Escolher a vida.

Os dias esvoaçam como folhas ao vento, num dia de Outono. As mãos permanecem vazias.

Mergulho para dentro e reflicto sobre o tanto que se transformou em mim e em redor de mim. No mundo que existe para lá e alheado da minha existência. Não sei se têm a mesma sensação, mas de repente parece que o tempo acelerou, tento ancorar-me nos dias e eles fogem para longe. Olho as pessoas a meu redor, a minha família, os meus amigos, perscruto-lhes as rugas, o olhar mais cansado, as dores que principiam ou se acentuam. Estamos a envelhecer. E de repente isto é real. É muito real.

E eu sei que metade da vida é imenso, mas a parte que falta é de igual imensidão. Nunca fui de escrever para a morte, sobre a morte, nunca lhe tive medo, mas agora dou por mim a pedir-lhe que se distraia por uns tempos. Que ouça a gargalhada da Matilde e lhe deixe o tempo de quem lhe quer bem, junto dela, e de mim também.

Esse resto da vida que é tanto e nada quando se tem amor.

Tenho vivido o presente com uma espécie de saudade dos momentos que se vão consecutivamente. Talvez seja coisa da maternidade, das despedidas diárias: do andar que de repente é mais direito e não tão atabalhoadamente fofo, do gatinhar que foi sopro e memória, do vestido que já não serve, das expressões que deixam de ser de bébé...

E ao testemunhar o seu crescer, as despedidas diárias lembram-me que o tempo também molda aqueles que vieram antes de mim. Os meus pais, agora avós, caminham numa linha que um dia será a minha. De repente, olho para eles como olhava para os meus avós, e tenho dificuldade em aceitar isso. Como é que aconteceu? Como é que pisquei os olhos e estas pessoas que agarravam em nós à sexta-feira à noite para ir acampar em Melides, se transformaram em avós?

E isso coloca-me frente a frente com ela, a que tudo devora e transforma.

Sussurro-lhe:

Não tenho medo de ti, concede apenas mais tempo a quem veio antes de mim.

A morte, essa senhora de passos delicados, ronda, mas não entra. Conheço-a intimamente, como se já tivéssemos privado. Mas não lhe tenho medo. Tenho-lhe reverência. Sinto-a como um fogo ao longe, quente e intocável a lembrar-me que a urgência da vida é agora.

Há chama acesa que incendeia dentro, há vida a querer romper. Há sede, há fome, há dança que quer ser. Há chão a ser pisado, pés a querer caminhar.

A morte ronda, mas escolho a vida.

Amanhã faço 39 anos. E nunca senti tanta vida pulsar em mim. Olho com ternura a que fui mas, oh, como anseio a mulher que vive hoje em mim.

Dancemos.

O apego aos objectos.

Há uma dicotomia, em mim (lol, uma, ahaha) quando penso em sustentabilidade e minimalismo. Sei, são conceitos interligados e frequentemente complementares, contudo, para mim, esta noção de desprendimento dos objectos vai muito além de uma organização prática ou do consumo consciente. A verdade é que, mesmo procurando adoptar práticas mais sustentáveis - que, confesso, nos últimos tempos tem sido mais desafiante do que quando vivia no Alentejo - há uma parte de mim que se apega aos objectos como se, de alguma forma, eles fossem fragmentos da minha história pessoal. E, deste prisma, já falhei com o minimalismo.

Não vejo os objectos como meras coisas utilitárias ou decorativas. Cada um deles carrega uma memória, uma sensação, uma história que se funde ao que sou. O meu amor por peças com história, sejam herdadas da família, de casas que habitámos ou encontradas em segunda mão, é uma forma de criar raízes, ou de as firmar na terra. Estes objectos não são apenas bonitos ou sustentáveis; são pontes para o passado, para a vida que vivi, para as pessoas que amei. Mas também são eles que trazem magia aos meus dias. Uma arca pode ser um empecilho para muitas casas, para mim é a lembrança palpável da minha bisavó, um livro traz com ele as mãos e o coração de quem mo ofereceu, uma móvel comprado em segunda mão na década de 60, pelo meu avô, testemunha hoje o caminhar bamboleante da minha filha. Estes objectos, como tantos outros que habitam comigo, são pedaços de mim, da minha família, da minha história, e custam a ser deixados ir.

O processo de destralhe, que não deixo de entender como necessário e benéfico, é para mim uma constante batalha emocional. Quando me vejo a dar ou doar algo, sinto como se estivesse a entregar pedaços da minha alma, pedaços de momentos que não volto a reviver. Guardo saudades desses objectos, ainda que sabendo que (alguns) não são fundamentais para a minha felicidade. É quase um paradoxo: querer estar mais leve e, ao mesmo tempo, sentir que estou a perder parte de mim.

Com a chegada da Matilde, esta visão tornou-se clara porque senti necessidade de a desafiar. De repente somos mais um, mais coisas. Pelo que aprendi, aos poucos, a desapegar. Não por força da moda ou da pressão para encaixar em nós uma estética minimalista - preciso de o referir porque, no auge das minhas partilhas sobre zero desperdício, vivi esta luta interna constante onde nunca me encontrei - mas por necessidade. A vida com ela exige uma reorganização e uma nova forma de ver as coisas, mudou tudo e, no processo rocambolesco, também mudaram dois pais que se tentam encontrar nas suas vidas, na sua casa e nas suas tralhas. Partes de nós também partiram e, com elas, objectos com os quais já não nos identificamos, pelo que este processo de destralhe, embora difícil de gerir internamente, também traz consigo uma sensação de alívio pela qual muitas vezes anseio.

Fiz as pazes comigo. Sei que sou mais do que o minimalismo ou a ideia de um espaço perfeito e despojado. Esta casa, que cohabito com objectos que se enchem de alma, de histórias, e que, também por isso, não perdem a sua utilidade, continua a ser o meu refúgio e reflexo fiel daquilo que sou, que somos. E, penso agora, talvez seja esse o verdadeiro equilíbrio: ser sustentável, sem deixar de lado o apego emocional às coisas que fazem parte da minha identidade.

[Termino nesta nota deixando já o spoiler: depois de 2 anos a morar nesta casa e não a sentindo ainda verdadeiramente nossa - a única divisão pensada e decorada, até então, foi o quarto da Matilde - estamos agora em redecoração da despensa! Confesso que estou muito entusiasmada e a sentir que já precisava de sentir isto dentro! Depois mostro!]

A garagem que é jardim: mapa de mim.

Ao olhar para trás, para as partilhas no meu primeiro blogue, percebo o quanto de mim já se tecia nelas, não é apenas a escrita que me devolve as memórias – é a alma de cada palavra, das fases que atravessei e das versões de mim mesma que foram crescendo a cada linha. Era um lugar quase secreto, escondido entre as folhagens de uma clareira na floresta, um diário no velhinho blogspot onde as palavras ecoavam no silêncio. Chamava-se "hoje pedi que o tempo parasse" porque já na altura, adolescente, eu procurava por formas de conseguir parar o tempo e guardar em caixinhas todos os momentos felizes e, por vezes, também os que doíam para que nunca me esquecesse de como se sai deles. Era isso, uma colecção de instantes que só eu lia.

Estas primeiras partilhas, tão vulneráveis e, por vezes, quase enigmáticas, marcavam o tempo de uma adolescência de alma inquieta, cheia de sonhos, de amor a explodir pelo peito e de encontros e amigos a todo o instante. Era o espaço para a poesia dos dias, para contar as histórias que o mundo não ouvia mas que gritavam dentro de mim. E era, assim, quase uma forma de me resgatar a cada novo texto, nesta busca incessante do que andava aqui a fazer. Era uma dança entre a escrita e o silêncio onde descobria quem era – ou, pelo menos, quem era eu naquele momento.

Como as estações que nos marcam os dias, da florida Primavera que principia a iluminar os dias do Inverno frio, ao Verão dos dias descalços que culmina no Outono que nos convida a despir de dentro. Fui partilha de poemas e livros que lia. Fui diário enigmático ou indirecta para um amor que doía. Fui Alma e fui Bea, e nelas depositei as vidas que não me cabiam nos dias que sonhei com fervor. Depois, o Alentejo, que me trouxe o A. pela mão do poeta Al Berto, e onde a sustentabilidade e o zero desperdício ganharam voz em mim. Desse tempo trouxe aprendizagens, crescimento (tanto crescimento) e a escuta atenta do corpo e da sua voz... que se transformou em urgência no regresso a Lisboa. Trouxe de lá amigos, e novas Inêses. Profissões diferentes e uma aceitação de mim mesma nesta multitude que, de outra forma, não encontraria. Em Lisboa, o ser Mãe, esta imensidão que me ocupa o espaço inteiro e me traz tantas de mim a tal intensidade, que só isto dava um blogue por si só.

Cada fase deste espaço, desta garagem, onde hoje cabe tudo e tanto, é uma camada de mim mesma, uma versão que se desdobrou e que não é nem menos nem mais do que sou hoje.

É um diário de navegação... ou um jardim, onde sementes não brotaram, algumas plantas secaram, outras cresceram fortes e saudáveis. Por vezes chove, outras vezes não, há alturas em que passo dias a cuidar e outros em que mal me lembro de lá ir. Este jardim reflecte tudo isso, e sei que para quem lê nem sempre será visível, mas para mim, este, é um mapa de mim mesma.

Sempre que (me) partilho, é como se abrisse uma janela tanto para o que vivo, como para o que já vivi, e até para o que sonho acordada ou para as vidas que invento para universos paralelos. Para o que me fez rir até doer a barriga, para o que me fez sorrir timidamente, para o morno e, tantas vezes, para as lágrimas e para as coisas que não sei explicar ou arranjar sentido de outra forma. Ao fazê-lo, sinto que não preservo apenas o passado, mas que reivindico para mim uma espécie de liberdade. Um espaço onde posso ser eu, inteira ou partida, sem precisar de me limitar nas palavras ou a uma só categoria, aqui, pelo menos aqui, permito-me respirar sem censura (e este é também um lembrete que me deixo).

Nesta altura do ano, com o Outono, principio sempre uma viagem para dentro. Foi essa viagem que me trouxe a esta reflexão, a este blogue e aos caminhos que pode tomar. Procuro recordar-me de que sempre foi mais do que apenas um espaço online, nele encontro sentido a cada transformação e, dessa forma, o caminho deste espaço tornou-se claro – é uma porta para mim mesma, inteira, nestas múltiplas camadas do ser. Tantas vezes contraditórias, mas sempre una.

Este texto marca, assim, uma pequena celebração deste cantinho, marcando, também, um compromisso para o que aí vem. Não há lugar a mudanças radicais – como sempre, serei eu, e é essa mesma liberdade que honro. Esta garagem será sempre um espaço de tudo, onde todas as minhas vozes coexistem, cada uma com a sua história, tornando-o cada vez e sempre mais (m)eu.

A vida que (não) vivemos.

Comecei, esta semana que passou, a ver uma série portuguesa chamada "Erro 404", onde uma app permite experimentar as vidas de outras pessoas por umas horas. É uma premissa irreal, bem sei, mas intrigante – quem não gostaria de, por breves momentos, poder espreitar os "e se" da própria vida? A série fez-me pensar sobre as várias vidas que sonhei acordada ter, aquelas que guardo em segredo, as que quase escolhi, as que nunca terei. Fez-me pensar, também, sobre esta teimosia que tenho em aceitar que cada escolha traz uma perda.

Vivo com este pequeno pesar, esta inquietação do que deixei para trás a cada caminho seguido. Acredito que cada um carrega consigo uma série de vidas alternativas, que quase conseguimos ver ao espelho. Tenho a certeza de que, nalgum ponto, todos imaginámos ser outro – mas seria uma benção ou uma maldição se pudéssemos, de facto, viver cada uma dessas vidas?

Como seria ser uma escritora solitária em Paris, a viver num estúdio de sótão, com as horas e o mundo todos ao dispor? Uma mulher nos seus trinta e tal anos, devoradora de livros, perdida em cafés e rodeada de ruas empedradas e de um silêncio que só as paredes do nosso próprio espaço sabem guardar.

Ou uma bailarina, discípula de Isadora Duncan, livre e rebelde, que dança de país em país e perde o medo nos braços da paixão? Que conhece o mundo como quem conhece a si mesma, e faz do corpo o seu próprio poema.

Ou então uma mãe de três, dona de uma casa no campo, onde crescem ervas medicinais e se ouvem risos de crianças. Uma herbalista, uma bruxa talvez, com um jardim para cuidar e uma horta para colher – uma vida de raízes e de magia, em que o tempo é medido pelo ciclo das estações.

Às vezes penso que, se pudesse, viveria cada uma destas vidas. Mas também sei que, no fundo, cada uma dessas vidas traz uma renúncia. Não posso ser todas, e essa ideia, que me desafia a fazer escolhas, também me lembra que há uma beleza especial em viver esta vida, a única onde posso ser eu mesma, completa nesta imperfeição, única nas minhas escolhas. Saber que não posso viver todas as vidas ensina-me a valorizar ainda mais a que tenho.

Ainda que não torne leve a tomada de decisões.

Talvez esta vontade de viver tudo numa só vida seja um exercício de imaginação, um desafio da alma, e talvez a resposta seja aceitar que tudo aquilo que desejamos já vive realmente em nós.

E ter presente que uma escolha não é apenas uma perda, mas uma clara afirmação daquilo que somos.