Cravos Brancos.
José saíra de casa à mesma hora do costume, sempre fora homem das suas rotinas. Pelas 7h00 tacteava o rosto a ver se não esquecera algum pêlo mais teimoso, a vista já não é o que era e, agora, já só se governa pelo tacto. Às 7h04 passava o after-shave e sorria para o espelho. A Maria adorava aquele after-shave. Às 7h10, depois de ajeitar o colarinho da camisa, José coloca o púcaro com o café ao lume e corta uma fatia grosseira de pão caseiro de véspera. Às 7h17 deita o leite quente para a tigela, junta o café acabado de fazer e desfaz com as mãos o pão, em pedaços gordos, para o ensopar. Sai de casa às 8h00, em ponto, ajeitando a sua boina.
Da sua casa à loja da dona Jacinta eram 9 minutos, a passo apressado, mas José já não tinha pressa, caminhava devagar e cumprimentava os vizinhos com um aceno, já às vizinhas, José curvava ligeiramente a cabeça fazendo uma pequena vénia, enquanto levantava a sua boina. Fora sempre um cavalheiro e Maria havia-lhe caído nos braços rendida pelos modos senhoriais, ainda que de uma humildade de quem crescera no campo.
Maria servia na casa da senhora Olímpia, uma portuguesa emigrada em França que regressara a Portugal após enviuvar. A senhora Olímpia era uma velha azeda, Maria não gostava de o dizer e até defendia a pobre senhora no café, quando ouvia as pessoas da aldeia comentarem. Sabia que era verdade, no entanto, era de facto uma senhora amargurada, mas pagava bem e Maria não tinha mais ninguém.
— Bom dia, Jacinta! Como vão os seus?
— Oh Sr. José, bom dia! Muito bem, obrigada, como vão os netinhos? - responde a afável florista.
— Uns reguilas, já se sabe! Ainda ontem a minha nora me enviou uns retratos pelo computador, estão tão bonitos os danadinhos.
— São a sua alegria, Sr. José! São só os cravinhos brancos?
— É verdade, Jacinta, são o meu consolo. Por hoje sim, não se incomode com o troco. - pegou nas flores e saiu desenhando um adeus.
José conhecera Maria no café da aldeia, não era costume lá entrar, mas quando o dono do Café Central adoecera, e não tivera outro remédio se não fechar portas, José, ainda que contrariado, vira-se obrigado a procurar outro café. As mudanças nunca lhe eram fáceis, mas rapidamente se acostumou às novas caras. Eram caras que traziam novas histórias e José, que desde cedo se perdia nos livros, adorava uma boa história. Fora numa dessas manhãs, antes de abalar para a labuta, que vira Maria entrar no café. Trazia uma saia de fazenda e uma camisola de malha gasta, mas foram as mãos que lhe prenderam a atenção. Eram uns dedos longos, numa pele branca, belíssima, e agarravam um ramo de flores do campo embrulhadas em papel pardo. Nos braços trazia um cesto de hortaliças. O cabelo, estabanado, dizia-lhe que caminhara até ali, as bochechas traziam ainda o frio da manhã. Maria respirava fundo tentando sossegar o coração acelerado da caminhada. José respirava fundo tentando fazer o mesmo, a visão de Maria tinha sido um desassossego para o seu peito.
— Bom dia, Sr. José! - cumprimenta a sorridente dona do café da aldeia - Como vai hoje?
— Boooom diiiiia! - respondera, prolongando as vogais por entremeio de um sorriso.
Eram sempre uma alegria as manhãs no café, há 60 anos que ali ia tomar a sua bica e que, por tantas vezes, regressava ao final do dia para um chiripiti com o dono. O dono do café fora um homem muito querido e respeitado por toda a aldeia, havia falecido, entretanto, e fora a sua filha quem decidira tomar conta do café. José não escondia a gratidão e o apreço por não ver fechado o café que lhe trouxera a Maria.
— Que belas flores, sr. José, são para a sua Maria?
— Pois, sim, as suas favoritas! - respondeu de sorriso aberto.
Não havia ninguém da aldeia que já não conhecesse os passos ao Sr. José, a estabilidade dos dias sempre iguais davam-lhe a ilusão de ter ainda algum controlo na sua vida e que esta não lhe escapava pelos dedos, como areia. Depois da bica, José levantava-se da sua mesa habitual e dirigia-se ao balcão para mais dois ou três dedos de conversa, depois despedia-se cordialmente, meter-se-ia, ao sair, com os moços da esplanada e seguia, ajeitando as flores ao peito, pelas escadas que ladeavam o prédio. A chegada ao cimo das escadas, coincidia sempre com a altura em que a dona Amélia sacudia a noite dos tapetes dos quartos. José deixava-se ficar por ali uns minutos, olhando a serra ao fundo, tentando recuperar o fôlego que a subida lhe roubara. Acenaria depois a Amélia, segurando na mão a sua boina, e continuava caminho rua acima.
José, que sorria de cabeça erguida ao mundo, baixava gravemente a cabeça ao sentir a rua de calçada sob os pés cansados. O coração batia mais forte e era como se o seu corpo reconhecesse a Maria muito antes de si. Havia sido sempre assim, mesmo depois de casarem. Regressar a casa, depois de um dia de trabalho, era como voltar a vê-la naquela exacta manhã em que a avistara pela primeira vez, e se apaixonara. Fora logo após essa manhã que José começara a fazer a corte a Maria, ao final da segunda semana Maria começara a chegar mais cedo ao café, e ao final da terceira já se sentavam à mesma mesa. Ao fim de um mês já Maria sorria, por detrás da sua mão direita, como quem esconde a timidez aos elogios de José e três meses depois anunciavam noivado.
Nunca lhes faltou amor e a única discussão que haviam tido fora por causa da senhora Olímpia, que não achou piada nenhuma quando Maria lhe comunicou que ia deixar a sua casa para cuidar do seu filho recém-nascido. Maria teria voltado desgostosa para junto de José, sempre defendera a amargurosa senhora e não contava ser tratada de tão maus modos quando, mesmo depois de casada, e já grávida, continuava a cuidar de sua senhora sem faltar um dia que fosse. José tinha ficado tão revoltado com a senhora Olímpia que quis ir lá dizer-lhe umas verdades, mas Maria, que não era rapariga de querer ficar mal com ninguém, tivera de lhe fazer frente. José ficara revoltado, e até amuado, mas faria tudo pela sua Maria e decidiu esquecê-lo.
Lembrava-se agora desta discussão e ria-se, quem o visse de longe diria que era um homem feliz.
José estava parado em frente ao portão velho, sacudiu a camisa e o casaco, ajeitou a boina na cabeça e olhou uma vez mais as flores que trazia consigo. Respirou fundo e entrou, caminhava por entre os carreiros de gravilha e ouvia os pássaros que cantavam nas árvores, era um sítio bonito, não podia negá-lo apesar da dor que sempre o afligia ao transpor aqueles muros. Sabia o caminho de cor e foi com rapidez que lá chegou. Baixou-se sobre o joelho esquerdo e limpou com a mão direita a pedra mármore. Retirou solenemente os óculos do bolso da camisa e ajeitou-os ao rosto, o sorriso dela continuava a ser o mais bonito e sentia a falta dele a cada hora do seu dia. Da jarra, despejou as flores antigas e a água. Encheu-a com água nova, colocou-lhe dentro os cravos brancos e ajeitou-a sobre a pedra.
Suportar-lhe a ausência era a dor maior que alguma vez lhe infligira o peito, tinha muitas saudades da sua Maria. E chorava.