Garagem

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Sobre a escrita e a memória feita presente.

No sábado consegui ver um filme, enquanto jantava no sofá, depois do A. se deitar com a bébé. Há muito que não o fazia, vou conseguindo ver séries, encaixando episódios aqui e ali, nos dias de maior carga mental, para desligar a cabeça (que ironia 🫠).

Queria um filme leve, que não me fizesse pensar na vida, mas que me levasse daqui por umas horas. E fê-lo, medíocre para filme leve, enredo previsível, falas meio forçadas, actores meh e com zero química. Tudo muito atabalhoado e a história que podia ter sido bem trabalhada deixou-se ficar pela superfície. Contudo, houve uma frase no final do filme que me ficou a entoar nas entranhas.

As personagens envolvem-se e acabam por se separar abruptamente, um ano mais tarde - assim o parece - reencontram-se “ao acaso”, e ela pede-lhe desculpa pela forma como tudo terminou. Escritora, e com um livro acabado de lançar, diz-lhe:

“- A questão é… tive saudades tuas. A cada minuto. E a escrita é assim. Permite-nos agarrar algo que perdemos. Então, fiz isso.”

E eu fiquei sentada no sofá, depois do filme terminar, a tentar digerir esta frase.

O A., numa conversa de fim de dia que tivemos há umas semanas, perguntava-me se eu já tinha deixado partir alguém da minha vida, deixar ir para sempre, não lembrar, não escrever, não forçar o reencontro, e a verdade é que não sei como se faz isso. É como se tivesse sempre toda a gente na minha vida, ainda que não, porque é só doido, porque não há tempo nem espaço mental ou emocional para ter toda a gente com quem privámos nos nossos dias, mas eu consigo falar com quem quer que seja do meu passado e tecer uma ponte para o agora. Simplesmente porque aquela pessoa guarda uma parte de mim, e eu guardo uma parte dela, por muito breve que tenha sido o encontro.

E quando a linha se destece, e os encontros se perdem para lá da memória… eu tenho a escrita. E na minha escrita tudo existe ao mesmo tempo. Tudo se conserva exactamente como foi. Numa folha de papel de arroz, muito fininha e gasta, ou num diário amarelado cheio de rabiscos, numa nota escondida no telemóvel, ou em partilhas no blogue. A escrita torna eterno o que nos vai dentro, talvez por isso também haja pedaços de nós que nunca ousamos escrever.

Escrever dá-me vida. Para quem, como eu, não lida bem com isto de se ser só uma coisa, permite-me, em parte, viver todas as vidas nesta mesma.

Pronto, era só isto que precisava de aqui trazer. O que pensam disto?