encontrar-te tão assim de visita
(...)
Estava a porta entreaberta,
não bati sequer. Sempre me espanta encontrar-te tão
assim de visita, na tua própria casa, em ti.
Era difícil tocar-te, mexer-te. Na parede branca
oscilam os ramos, as sombras de ramos da alameda.
Era mais fácil beijar-te, por falta de palavras. Tão profundo
é o silêncio, que se ouvem todos os rumores,
o ladrar de um cão, o silvo de uma fisga,
a pancada dos ramos no entardecer, lembrando
um sino submarino. Pensava que amar-te (querer-te livre)
começava na ponta dos dedos e ia até às ideias mais abstractas,
que o teu corpo era a melhor expressão possível de ti, e ainda
muda, como um hieróglifo enterrado
na areia do teu deserto favorito (algures na anatólia),
pensava que serias um dia aquela singular memória
que nos separa, um breve instante, de tudo quanto vemos,
e muitas outras noites, acordado junto ao teu corpo ausente
seriam como esta: vidros abertos sobre um ror de estrelas,
nuvens ligeiras navegando em direcção ao mar,
o jovem coração, liso detrás das grades, dos ossos.
(«Expressão» é tão inexacto! Na verdade existes
no teu corpo, com todo o passado embrulhado
na pele sensível, no calor animal do gemido que
às vezes sopra dos teus sonhos, e até o futuro
misteriosamente cabe no exíguo volume
entre mãos.) (...)
António Franco Alexandre, «Uma fábula», 2001