Os Aparecidos
Foi mesmo esta manhã,
no meio da rua.
Eu esperava
com os outros, junto ao sinal de atravessar,
e de súbito senti como um leve roçar,
como quase uma súplica na manga.
Depois,
enquanto precipitadamente atravessava,
a visão de uns olhos terríveis, exalados
não sei de que vazio doloroso.
Acontece que isto sucede
demasiado a miúdo.
E todavia,
pelo menos em alguns de nós,
fica um rasto de mal-estar furtivo,
um certo sentimento de culpa.
Lembro
também, numa formosa tarde
em que voltava para casa... Uma mulher
estatelou-se a meu lado, encolhendo-se
sobre si mesma, silenciosamente
e com uma incrível lentidão - agarrei-a
pelas axilas, um momento o rosto,
velho, quase pegado ao meu.
Depois, sem compreender ainda,
ergueu uns olhos onde nada
se lia, senão a pura privação
a dizer-me obrigada.
Voltei-me
a custo, a vê-la rua abaixo.
Não sei como explicá-lo, é
como se tudo,
como se o mundo à minha volta
estivesse parado
mas continuasse em movimento
cinicamente, como
se nada, como se nada fosse verdadeiro.
Cada aparição
que passa, cada corpo a sofrer
não anuncia morte, diz que a morte estava
já no meio de nós sem o saber.
Vêm
de lá, do outro lado do fundo sulfuroso,
das surdas
minas da fome e da multidão.
E nem sequer sabem quem são:
desenterrados vivos.
Jaime Gil de Biedma
Antologia Poética,
Cotovia