Neste preciso tempo, neste preciso lugar


No princípio era o Verbo
(e os açúcares
e os aminoácidos).
Depois foi o que se sabe.
Agora estou debruçado
da varanda de um 3.º andar
e todo o Passado
vem exactamente desaguar
neste preciso tempo, neste preciso lugar,
no meu preciso modo e no meu preciso estado!

Todavia em vez de metafísica
ou de biologia
dá-me para a mais inespecífica
forma de melancolia:
poesia nem por isso lírica
nem por isso provavelmente poesia.
Pois que faria eu com tanto Passado
senão passar-lhe ao lado,
deitando-lhe o enviesado
olhar da ironia?

Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?

Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que já dá para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.

Manuel António Pina
Todas as Palavras, Poesia Reunida
Assírio & Alvim 


que se sublinhe em jeito de "note to self", para todas as vezes que o Passado irrompe pelas janelas do Presente adentro.  

'faz de mim o que quiseres, dobra o cabo dos trabalhos e atira-te de cabeça'


Eras mesmo a fonte de tudo, pelo menos
naquele dia a que chamámos perfeito.
Os dias tinham-se entranhado nos dias,
a tal ponto que a vida era só dias, dias
a seguir uns aos outros. Apenas dias.
De olhos vendados e sem bater numa única
parede, pegados a isto, ao cheiro reconhecido
só quando um dos corpos se afasta.
Sente-se a falta, eu farejo como um cão
e depois sento-me triste a um canto
com um livro na mão. Mas naquele dia
que ambos classificámos de perfeito
eu pude ver a vida ali desdobrada em duas
à minha frente. E a tua inocência poderosa
a dizer-me uma vez sem exemplo faz
de mim o que quiseres, dobra o cabo
dos trabalhos e atira-te de cabeça.

Helder Moura Pereira
via blogue poesia


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