A garagem que é jardim: mapa de mim.

Ao olhar para trás, para as partilhas no meu primeiro blogue, percebo o quanto de mim já se tecia nelas, não é apenas a escrita que me devolve as memórias – é a alma de cada palavra, das fases que atravessei e das versões de mim mesma que foram crescendo a cada linha. Era um lugar quase secreto, escondido entre as folhagens de uma clareira na floresta, um diário no velhinho blogspot onde as palavras ecoavam no silêncio. Chamava-se "hoje pedi que o tempo parasse" porque já na altura, adolescente, eu procurava por formas de conseguir parar o tempo e guardar em caixinhas todos os momentos felizes e, por vezes, também os que doíam para que nunca me esquecesse de como se sai deles. Era isso, uma colecção de instantes que só eu lia.

Estas primeiras partilhas, tão vulneráveis e, por vezes, quase enigmáticas, marcavam o tempo de uma adolescência de alma inquieta, cheia de sonhos, de amor a explodir pelo peito e de encontros e amigos a todo o instante. Era o espaço para a poesia dos dias, para contar as histórias que o mundo não ouvia mas que gritavam dentro de mim. E era, assim, quase uma forma de me resgatar a cada novo texto, nesta busca incessante do que andava aqui a fazer. Era uma dança entre a escrita e o silêncio onde descobria quem era – ou, pelo menos, quem era eu naquele momento.

Como as estações que nos marcam os dias, da florida Primavera que principia a iluminar os dias do Inverno frio, ao Verão dos dias descalços que culmina no Outono que nos convida a despir de dentro. Fui partilha de poemas e livros que lia. Fui diário enigmático ou indirecta para um amor que doía. Fui Alma e fui Bea, e nelas depositei as vidas que não me cabiam nos dias que sonhei com fervor. Depois, o Alentejo, que me trouxe o A. pela mão do poeta Al Berto, e onde a sustentabilidade e o zero desperdício ganharam voz em mim. Desse tempo trouxe aprendizagens, crescimento (tanto crescimento) e a escuta atenta do corpo e da sua voz... que se transformou em urgência no regresso a Lisboa. Trouxe de lá amigos, e novas Inêses. Profissões diferentes e uma aceitação de mim mesma nesta multitude que, de outra forma, não encontraria. Em Lisboa, o ser Mãe, esta imensidão que me ocupa o espaço inteiro e me traz tantas de mim a tal intensidade, que só isto dava um blogue por si só.

Cada fase deste espaço, desta garagem, onde hoje cabe tudo e tanto, é uma camada de mim mesma, uma versão que se desdobrou e que não é nem menos nem mais do que sou hoje.

É um diário de navegação... ou um jardim, onde sementes não brotaram, algumas plantas secaram, outras cresceram fortes e saudáveis. Por vezes chove, outras vezes não, há alturas em que passo dias a cuidar e outros em que mal me lembro de lá ir. Este jardim reflecte tudo isso, e sei que para quem lê nem sempre será visível, mas para mim, este, é um mapa de mim mesma.

Sempre que (me) partilho, é como se abrisse uma janela tanto para o que vivo, como para o que já vivi, e até para o que sonho acordada ou para as vidas que invento para universos paralelos. Para o que me fez rir até doer a barriga, para o que me fez sorrir timidamente, para o morno e, tantas vezes, para as lágrimas e para as coisas que não sei explicar ou arranjar sentido de outra forma. Ao fazê-lo, sinto que não preservo apenas o passado, mas que reivindico para mim uma espécie de liberdade. Um espaço onde posso ser eu, inteira ou partida, sem precisar de me limitar nas palavras ou a uma só categoria, aqui, pelo menos aqui, permito-me respirar sem censura (e este é também um lembrete que me deixo).

Nesta altura do ano, com o Outono, principio sempre uma viagem para dentro. Foi essa viagem que me trouxe a esta reflexão, a este blogue e aos caminhos que pode tomar. Procuro recordar-me de que sempre foi mais do que apenas um espaço online, nele encontro sentido a cada transformação e, dessa forma, o caminho deste espaço tornou-se claro – é uma porta para mim mesma, inteira, nestas múltiplas camadas do ser. Tantas vezes contraditórias, mas sempre una.

Este texto marca, assim, uma pequena celebração deste cantinho, marcando, também, um compromisso para o que aí vem. Não há lugar a mudanças radicais – como sempre, serei eu, e é essa mesma liberdade que honro. Esta garagem será sempre um espaço de tudo, onde todas as minhas vozes coexistem, cada uma com a sua história, tornando-o cada vez e sempre mais (m)eu.

A vida que (não) vivemos.

Comecei, esta semana que passou, a ver uma série portuguesa chamada "Erro 404", onde uma app permite experimentar as vidas de outras pessoas por umas horas. É uma premissa irreal, bem sei, mas intrigante – quem não gostaria de, por breves momentos, poder espreitar os "e se" da própria vida? A série fez-me pensar sobre as várias vidas que sonhei acordada ter, aquelas que guardo em segredo, as que quase escolhi, as que nunca terei. Fez-me pensar, também, sobre esta teimosia que tenho em aceitar que cada escolha traz uma perda.

Vivo com este pequeno pesar, esta inquietação do que deixei para trás a cada caminho seguido. Acredito que cada um carrega consigo uma série de vidas alternativas, que quase conseguimos ver ao espelho. Tenho a certeza de que, nalgum ponto, todos imaginámos ser outro – mas seria uma benção ou uma maldição se pudéssemos, de facto, viver cada uma dessas vidas?

Como seria ser uma escritora solitária em Paris, a viver num estúdio de sótão, com as horas e o mundo todos ao dispor? Uma mulher nos seus trinta e tal anos, devoradora de livros, perdida em cafés e rodeada de ruas empedradas e de um silêncio que só as paredes do nosso próprio espaço sabem guardar.

Ou uma bailarina, discípula de Isadora Duncan, livre e rebelde, que dança de país em país e perde o medo nos braços da paixão? Que conhece o mundo como quem conhece a si mesma, e faz do corpo o seu próprio poema.

Ou então uma mãe de três, dona de uma casa no campo, onde crescem ervas medicinais e se ouvem risos de crianças. Uma herbalista, uma bruxa talvez, com um jardim para cuidar e uma horta para colher – uma vida de raízes e de magia, em que o tempo é medido pelo ciclo das estações.

Às vezes penso que, se pudesse, viveria cada uma destas vidas. Mas também sei que, no fundo, cada uma dessas vidas traz uma renúncia. Não posso ser todas, e essa ideia, que me desafia a fazer escolhas, também me lembra que há uma beleza especial em viver esta vida, a única onde posso ser eu mesma, completa nesta imperfeição, única nas minhas escolhas. Saber que não posso viver todas as vidas ensina-me a valorizar ainda mais a que tenho.

Ainda que não torne leve a tomada de decisões.

Talvez esta vontade de viver tudo numa só vida seja um exercício de imaginação, um desafio da alma, e talvez a resposta seja aceitar que tudo aquilo que desejamos já vive realmente em nós.

E ter presente que uma escolha não é apenas uma perda, mas uma clara afirmação daquilo que somos.

 
 

Um bocadinho mais do mundo.

A Matilde começou a caminhar ontem. Já o fazia agarrada às coisas, agarrada a nós, é muito cautelosa, arrisca mas sempre sentindo uma base segura. Ontem levantou-se sozinha, sem procurar apoio e começou a caminhar. Ainda não acredito que consegui apanhar em vídeo, foi tão rápido! Vi e revi o vídeo mais vezes do que será bonito admitir, os passinhos de teste, o olhar confiante que cruzava o meu, o sorriso e as gargalhadas de pura felicidade. A minha filha caminhou sozinha pela primeira vez, atravessou o quarto de uma ponta à outra. A minha filha caminhou sozinha e a cada passo tornou-se um bocadinho mais do mundo… um bocadinho menos minha.

Um bocadinho mais do mundo. Um bocadinho menos minha.

Estou tão feliz e tão assustada em partes iguais. O futuro sempre me causou ansiedade, mesmo sendo uma pessoa relativamente positiva, que acredita que tudo sempre correrá bem… mesmo quando não. Este blogue não é sobre política, mas ainda que não fale sobre isso, cada acto nosso tem de ser político, não existe outra forma, quando a nossa casa comum arde. À luz do que se vive estes dias nos EUA, não deixo de pensar que a minha filha caminha hoje para um mundo cujo futuro é assustador.

E eu não tenho outra hipótese se não arregaçar mangas e construir para ela um mundo melhor, e esse mundo começa para ela neste pedacinho de terra que pisa sorrindo.

 

Este leopardo, a que chamei “Tigre” a minha vida toda, foi-me oferecido pelo meu pai quando fiz 1 ano. Hoje é abraçado pela Matilde.

 

Depois dela.

Acordei com o gato Sebastião, mimado, a pedinchar mimo a horas indecentes da manhã. Levantei-me, espreitei a rua, estava escuro e frio, ainda tinha mais uma hora para dormir, voltei a deitar-me. Na cama, a Matilde já dera uma volta completa a dormir, assim que me deito, encaixa a cabeça debaixo do meu braço, o nariz quase toca a minha cintura. Há noites que se tem encaixado assim. Aos pés da cama dois gatos já ronronam. A gata aninha-se nas pernas do André, que esta noite foi delegado ao colchão no chão para dar espaço às acrobacias nocturnas da bébé.

Estico o meu braço, com a mão aconchego-lhe o fundo das costas, odeia ser tapada e geralmente acorda quando o faço, mas sei que se sente confortável quando a abraço assim.

Como era a vida antes dela chegar? Penso. Há dias em que sinto muitas saudades da Inês (das várias) que fui, dias em que questiono a decisão de querer ser mãe, principalmente nos dias em que maternar é demasiado doloroso (quando não?!). Quando o choro é dilacerante, quando as horas parecem não passar, quando todas as decisões parecem erradas.

Depois sinto o seu pequeno corpinho junto ao meu, o seu respirar, escuto o seu gargalhar, a forma como já responde ao que lhe pergunto, as relações que tece a seu redor, a forma como se move no mundo. De súbito, o passado já foi. Guardado num louceiro, à vista do recordar, mas longe o suficiente para dar espaço a este futuro que me entra de rompante peito adentro a cada despertar.

Vou levantar-me dentro de pouco tempo, iremos abrir juntas as janelas à manhã, dizer adeus aos autocarros amarelos que já passam lá em baixo e, com sorte, passará um comboio que levará com ele uma gargalhada da Matilde e um "não há" assim que a última carruagem desaparecer por detrás dos prédios.