Noutro tempo pousavas a tua mão

Noutro tempo pousavas a tua mão
No meu braço disponível
E sentia-te a vida pela ponta dos dedos
O teu coração solitário a palpitar na carne
Pelo sorriso...

Noutro tempo olhava a janela não como um buraco neutro
De onde é inútil sair ou enganar o olhar
E perdia-me nos teus cabelos a bailar a bailar
Essa magnificente vertigem que eram teus braços ansiosos

O dia ajuntava as partes de ti
E eu colecionava-te aos poucos
Descobrindo os teus recantos proibidos
Aonde beber de ti

Éramos um silêncio embriagado de gestos
Linguagem de um universo doméstico
Que não terminava de acontecer

Só os pássaros ou as estrelas nos igualavam...

Fugia então de ti por essas tardes fora
Correndo entre as urzes e as árvores silentes
Ouvindo-te os passos como um sussurro ardente
De teu corpo vadio buscando a minha pele

Era a ardência jovem dum suspiro
Uma febril meditação sobre o abismo

Perdia-me no tempo tentando ganhar a vida
E via teus cabelos crescerem dia a dia

A tua pele envelhecendo em rugas pequeninas
O final macabro que termina a festa

Era tudo tão dolorosamente lento
Vinte anos depois quase vinte séculos
Após vinte dias...

Tu eras já ninguém caindo pela rua
E eu mendigo roto esperando ternura!

 

João Maria do Ó Pacheco
Poemas I,
Editora Labirinto

 

 

Fotografia: Marco Gil 

É urgente o amor.


É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
— Eugénio de Andrade

 

      Caminhávamos lado a lado, junto ao mar. A manhã estava muito fria e levávamos as mãos nos bolsos, enquanto conversávamos. Quem nos visse de longe diria que éramos um casal, não pelos corações - revoltos, como o mar, naquele dia -, mas pela forma como nos olhávamos, como os corpos se tocavam inconscientemente e como nos ríamos. Principalmente isso: como nos ríamos debaixo da chuva.

      Um olhar mais atento talvez escrevesse sobre nós, poderia dizer que nos havíamos apaixonado há 5 anos atrás, ou que celebrávamos um primeiro ano de vida conjunta. Ou poderia ir mais fundo e ler-nos os olhos: descobrir que éramos urgência. Poderia escrever para nós a história que não fomos capazes de proclamar - e ficamos tão bem, lado a lado - poderia ver mais do que aquilo que dizemos um ao outro, ou poderia ler-nos o silêncio e descobrir que nos encontráramos pela primeira vez, que o coração se estilhaçava na incerteza de um reencontro e que nos entregámos na urgência de quem não pode permanecer.

 

Dizes que gostas de mim

Dizes que gostas de mim de uma forma
que não consigo deixar de corar;
que gostas de mim de um modo primário,
sem razão aparente e sem desculpas,
e que gostas de mim pois me desejas, 
pois sabes que eu também gosto de ti
e o monstro deste amor nos devora
a alma, a paciência e as maneiras.
É só pena que todas estas coisas
nos morram afogadas em silêncio.

 

Amalia Bautista
Estou Ausente,
Averno

Quando o homem entra na mulher.

Quando o homem
entra na mulher,
como a rebentação
batendo na costa,
uma e outra vez,
e a mulher abre a boca de prazer
e os seus dentes brilham
como o alfabeto,
Logos aparece ordenhando uma estrela,
e o homem
dentro da mulher
ata um nó,
de modo que nunca mais
possam voltar a separar-se
e a mulher
trepa a uma flor
e engole o seu pecíolo
e Logos aparece
e solta os seus rios.


Este homem,
esta mulher
com o seu duplo desejo
tentaram atravessar
a cortina de Deus
e conseguiram-no por um instante,
embora Deus
na Sua perversidade
desate o nó.

 

Anne Sexton
(tradução de Jorge Sousa Braga)