Recordação

Recordação | s. f.
re·cor·da·ção

Pedaços de tempo perdido que se guardam com carinho em latas de bolachinhas de manteiga.

Nota: de quando em quando surgem linhas, agulhas e dedais no lugar de recordações, é preciso não julgar e tentar enxergar para lá do tempo. Relatos há de quem tenha encontrado entre as linhas o sorriso de uma avó ou a teimosia de uma meia que teimava em esgaçar no dedão.

 
De doce linguajar e carácter matreiro, as recordações são tão comuns quanto invulgares. Habitam sótãos e garagens, com uma preferência especial pelos Saudosos, mas também surgem em algibeiras e gavetas entralhadas, fazendo os mais Distraídos suspirar.

Recordação é o sorriso daquelas férias em 91 que espreita do cimo da estante, ou o poema sublinhado do livro que não nos lembramos de ter lido, mas que nos marcou. Conchas da praia de Melides num frasco de vidro, o ramo do dia da espiga atrás da porta, a mesa - de onde escrevo - feita pelo meu pai e as formas em folha de flandres onde eram feitos os bolinhos favoritos do avô Fialho.

São tesouros de aventuras sem tempo, espécie de máquina avançada de fazer dobrar os dias para que o ontem se faça agora. Não se deixem enganar os que pensam que só de elementos físicos se faz uma recordação. Ainda há pouco - sem sair de casa - estive com o meu pai, em Alcabideche, tudo porque me lembrei das paragens obrigatórias na Gêbêcê quando regressávamos da praia do Guincho no mini-moke amarelo. Se fecho os olhos ainda sinto o cheiro a óleo e ferragens, dos combustíveis e da tinta automóvel, escuto os barulhos da oficina no fim do expediente, os escritórios vazios. Se me atrevo a esticar o braço, quase posso jurar que a minha mão vai tocar as mãos do meu pai, ainda ásperas, de lavar com supergel.

Não me resta se não afirmar, perdoem-me os mais cépticos, que isto de que se fazem as recordações é o mesmo material de que se faz o amor: presença.


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Sob a varinha de condão da encantadora de corações pulsantes, Cris Lisbôa
(post original para instagram)

Olívia e o Vento

Aproximei-me quase como que pedindo desculpa, como se a minha presença não fosse digna da mesma terra. Sacudi o pó da minha roupa, e ajeitei o cabelo, sorri. Ela, envergonhava-se sob o sol do meio dia, folhagem desperta, pétalas que te convidam a ficar perto. Sentei-me sob as suas folhas e como quem escuta, sem querer querendo, a conversa da mesa ao lado no café, escutei-lhe a conversa com o Vento:

- Olívia - nome que nos deixa a boca entaremelada de beleza, pensei, fica-lhe tão bem o nome - porque não me deixas amar-te? - continou o Vento.

 
Recordo-me olhar de relance e Olívia parecia ter crescido sob uns sapatos de salto que guardara para quando Ventura, o vento, soprasse. Sorriu como quem não sabe o que fazer às folhas, e as suas pétalas, outrora escondidas pela timidez sob o sol que brilhava por entre a folhagem, já não eram tom céu ao nascer da noite, quantas cores o dia tem, mas cheiro a ternura e colo, mãos de avó no cabelo, café da manhã. Olívia tinha o cheiro da felicidade e dançava, e eu entendi porque Ventura soprava tanto naquela região da Amazónia. Ventura e Olívia dançavam, e eu aprendi que impossíveis é coisa que não existe no amor.

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Escrito sob a varinha de condão da encantadora de corações pulsantes, Cris Lisbôa

É urgente o amor.


É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
— Eugénio de Andrade

 

      Caminhávamos lado a lado, junto ao mar. A manhã estava muito fria e levávamos as mãos nos bolsos, enquanto conversávamos. Quem nos visse de longe diria que éramos um casal, não pelos corações - revoltos, como o mar, naquele dia -, mas pela forma como nos olhávamos, como os corpos se tocavam inconscientemente e como nos ríamos. Principalmente isso: como nos ríamos debaixo da chuva.

      Um olhar mais atento talvez escrevesse sobre nós, poderia dizer que nos havíamos apaixonado há 5 anos atrás, ou que celebrávamos um primeiro ano de vida conjunta. Ou poderia ir mais fundo e ler-nos os olhos: descobrir que éramos urgência. Poderia escrever para nós a história que não fomos capazes de proclamar - e ficamos tão bem, lado a lado - poderia ver mais do que aquilo que dizemos um ao outro, ou poderia ler-nos o silêncio e descobrir que nos encontráramos pela primeira vez, que o coração se estilhaçava na incerteza de um reencontro e que nos entregámos na urgência de quem não pode permanecer.