O amor (pensa ela cardando o nevoeiro)
é tão avesso ao longe como ao perto.
Tal como vive, enterra-se em parte incerta.
Ainda sinto que a minha pele fora da tua
é uma morte dentro de nós:
o silêncio em que os orgãos se tornaram.
Quando vêm à tona mais se afundam
nos avessos. Nada distingue o pulmão do rim:
a bílis já só segrega cansaço.
Viver é somar os dias, tomar café sem pensar
na violência contra o açúcar. O saco aberto
a despejar a identidade antes que a garganta
engula o café já doce, porque alguém matou
antes, antes e depois de nós.
A própria sedução é o corpo atiçado nas asas.
Entre o possível e a sua morte
há um instante de beleza:
o esquecimento da linha que protege de si o amor.
Fosse o horizonte esta dissolução
ou o nevoeiro (que a ilumina). Cegueira do olhar:
só os intestinos sofrem de clarividência,
só eles atiram para fora o mais íntimo de nós.
Ainda assim será possível seguir a rota da sede
(os lábios dela) na espuma do café?
Desenhar-lhe na boa uma bússola sem norte?
(enquanto hesita) O café esfria.
Bebo-te de um trago para me esvaziar de ti.
Não é a cama o corpo mais fiel à lei da gravidade?
Não é por isso que continuamos a sorver
a chávena vazia?
A espuma desfaz-se na doçura do açúcar
antes de ser consumida pelas trevas do café.
Levo a chávena à boca: os lábios queimam
o avesso do beijo.
É tão fácil culparmo-nos, a culpa quanto baste
(antes e depois de nós, ela repete).
Nada procuras, nem o líquido acre
com que mataste o coração. O açúcar
nos poros do café: doçura transitiva.
Incompreensível para os diabéticos da alma.
Não adianta uma dose de insulina.
Somos seres minúsculos
atados ao avesso do mundo
num jogo em que ninguém ganha,
nada se transforma
e tudo se perde quanto baste.
Definitivamente q.b.
Rosa Alice Branco,
O Mundo Não Acaba no Frio dos teus Ossos