Luís saíra para levar as crianças à escola, havia o autocarro que as levava da aldeia, mas nas manhãs em que era ele a vesti-los a brincadeira sobrepunha-se sempre a qualquer horário. Ela já havia descido para abrir as portadas à mercearia, o Sr. Manuel não tardava a trazer os cabazes com os produtos da sua horta e ela queria ligar tudo antes dele chegar.
A mercearia funcionava no rés-do-chão da casa onde moravam, era uma casa alta de paredes brancas e janelas em toda a sua extensão. O espaço, que hoje dava lugar à mercearia, havia sido, em tempos, uma taberna, e as pessoas da aldeia ainda falavam disso, contavam histórias do tempo que lá passaram partilhando memórias de tempos felizes, mesmo quando não o eram, porque o trabalho era duro e a vida difícil, mas era como se aquele sítio houvesse sido um refúgio para os dias cinzentos. Quando Luís anunciara, na festa da aldeia, que o espaço reabriria ao público foi como se uma onda de ternura percorresse os rostos mais antigos.
A casa manteve-se fechada durante muito tempo e era a mãe de Luís quem a cuidava, como se mantendo presente um passado que não sabia como largar. Quando ela engravidou foi como se o caminho a dois, que mal haviam traçado, se estendesse a seus pés. Luís queria regressar a Aldeia, fazia todo o sentido, a casa dos avós estava fechada há demasiado tempo e podiam arranjá-la eles mesmo e fazer dela a sua casa. Fora ali que crescera, que brincara, que havia sido feliz como não se lembrara mais, e queria para o bebé memórias tão felizes quanto as dele.
Aproveitaram grande parte da mobília que já lá havia, ela gostava de mobília antiga, era como se lhe chegasse com muitas vidas dentro, perdia-se muitas vezes a imaginar como seria numa vida anterior à deles, como seria a casa, como se movimentavam nela, como seriam as suas rotinas. Na cozinha, tinham uma cristaleira que ela vira na taberna na noite em que ele a levara lá pela primeira vez, e era como ter uma espécie de memória que se materializava todos os dias, pelo pequeno-almoço. Recordava, com comoção, a preocupação de Luís quando ela o convenceu a restaurarem o móvel no terraço da casa. Ela estava grávida de 5 meses e estavam no pico do Verão, Luís tentara demovê-la por todos os meios, mas parecia que a gravidez ainda a tornava mais teimosa do que era e não teve outro remédio se não aceder. Fizeram um acordo, restaurariam o móvel ao pôr-do-sol se ela prometesse ir com ele, à lagoa, durante o dia - era a única forma de a manter sossegada, caso contrário daria com ela empoleirada em cadeiras a limpar os tectos - e ela concordou, ainda que impondo a condição de levar os seus livros. Dois, porque podia aborrecer-se. Ele riu alto.
Fora o melhor Verão de que tinha memória e ela sentia-se mais mulher do que nunca, usara vestidos de algodão fino o Verão todo e andara descalça a maior parte do tempo. Adorava andar descalça, sentir a terra pulsar sobre a planta dos seus pés como se fizesse parte dela. Lembrava-se de como Luís a olhava, como a puxava pela cintura para junto dele, acariciando-lhe a barriga - “Vamos ter um bébé” -, dizia-lhe, e ela beijava-lhe o rosto bronzeado enquanto passava os dedos pelo seu cabelo.
Os finais de dia no terraço, a restaurar a cristaleira, rapidamente se transformaram em noites de convívio. Os amigos apareciam, ao cair do sol, oferecendo ajuda e ela fazia limonada e servia scones, depois alguém trazia um pequeno grelhador, outro trazia uma garrafa de vinho, e as noites terminavam, já de madrugada, ao som de uma guitarra. Ao final do Verão já tinham restaurado mais móveis do que os que haviam planeado, e a casa compunha-se.