(memória)

Da carta que não chegou às tuas mãos, ficou um passado memorável. Nela constavam os pequenos episódios que vivemos juntos. Rasguei-a junto ao rio, fiquei a olhar os pedaços de papel serem absorvidos pelas águas turvas. A tentativa de apagar finalmente o nosso passado. Dirias que não havia necessidade, dirias que o que vivêramos não valia assim tanto, nem mesmo três folhas escritas com o coração nas mãos, a arder. Eu sorriria diante de ti como alguém que morresse. Despiria as roupas e lançar-me-ia na corrente fria. Tentaria recuperar o que conseguisse, pedaço a pedaço, até afogar-me de vez. Só existem duas razões para mexer numa ferida. Curá-la, ou abri-la ainda mais.

 

Fernando Dinis,
Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa, exodus.