Cabeça de Pano

por vezes a memória doutros dias chega-me de imagens fixas
mas se a vida germinasse dalgum cristal de prata
oculto nesta cabeça esculpida em pano erguendo-se
sob o peso duma lua artificial... abandonaria o riso
e a tristeza do corpo... partiria à procura
do segredo eterno das pirâmides ou dessa revelação
ainda em suspensão no revelador dos nocturnos laboratórios

ali guardas a travessia das cidades do mundo
e o mistério desta boca para sempre muda estes ossos
que posso tocar sem me ferir na escuridão do olhar

no zénite da noite levantar-se-ia o terno dedo
incendiando a leveza do papel mergulhado no fixador 
imobilizaria o desejo
e todas as imagens se tornariam apenas resíduos
visões ainda longínquas dalguma catástrofe... os rostos 
que na penumbra partilharam connosco a vida e
depois se ocultaram

começou a falhar-me a memória
já não sei se esta cabeça de pano existe ou ainda existirá
onde a contemplo... tenho medo
medo que me segrede quanta solidão está ainda intacta



Al Berto
"O Medo",
Assírio & Alvim

Parece que Lucrécio dizia...


o olhar saboreia o morno vinho
envolve teus cabelos, bebe no teu rosto, adormece
dormente onde tu e as aves vêm pernoitar
aqui sentado, neste restaurante de praia
mosquitos, aves reclinadas, talvez palmeiras envelhecidas como eu
a paisagem é um plano a preto e branco de filme neo-realista
pregos ferrugentos, madeiras soltas, a boca rente às areias
resíduos calcários de passos pelas ervas altas
águias, soberbas e lentas.

(o puto move-se, apertado nas calças finas, como se tivesse o corpo e os movimentos forrados por uma película em matéria finíssima, transparente, deixando contudo aperceber as modulações de seu corpo-rebuçado)

bebo, apetece-me gritar no horizonte do meu filme mudo
embriagado e desfeito, olho
aves irradiando luz, cordas enceradas pela transpiração das mãos
as vozes dos homens numa rebentação distante da ressaca
as vozes dos homens puxando os barcos: só o mar das outras terras é que é belo

em grande plano
ocupando-me por completo o écran desfocado dos olhos
o algodão pobre de tua camisa, as unhas roídas
os dedos duros engordurados, o buço macio
despontando num desafio que eu aceito

espero que a noite venha com seus ínfimos sóis, e solte transparentes borboletas cobertas de mel
parece que só assim, dizia Lucrécio
tua imagem permanecerá perto de mim, e a doçura do teu nome insinuar-se-á
gota a gota, junto ao coração

Al Berto
Poemas com Cinema,
Assírio & Alvim 

"sou o centro sísmico do mundo"


corpo
que te seja leve o peso das estrelas
e de tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa

abre a janela debruça-te
deixa que o mar inunde os orgãos do corpo
espalha lume na ponta dos dedos e toca
ao de leve aquilo que deve ser preservado

mas olho para as mãos e leio
o que o vento norte escreveu sobre as dunas

levanto-me do fundo de ti humilde lama
e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo

al berto
Vigílias,
Assírio & Alvim 

Escrevo-te para não me sentir só.


escrevo-te para não me sentir só. risco a palavra capaz de revelar o meu segredo. terei segredos? revelar o quê? se posso rir de mim mesmo sem que isso me doa. apago rapidamente o texto que me reflecte. esfaqueio o rosto que me simula. alinhavo feridas nos pulsos. levo flores à sepultura onde me recolhi para escrever. tenho medo e escrevo-te cartas insensatas. o quarto povoa-se de corpos nascidos duma mancha de tinta. fumo. snifo. fumo cigarro atrás de cigarro. tenho medo. escrevo deitado à luz fraca do candeeiro. o medo solta-se da folha de papel quando teu reflexo irrompe da máscara que se desfaz.

al berto
push here com uma polaroid
Assírio & Alvim