MEMÓRIAS DO CONTENCIOSO


Io non fu' d'amar voi lassato un quanco
Petrarca


1

E sequem-se-me os dedos a cabeça
estoire e não fique de tudo uma palavra
se a maldição for tanta que eu te esqueça

e não reste sequer o chão e não de quantas ruas e
não já reste a cidade

e seja memória deste homem um escárnio ocultado por quinze gerações de vindouros
com seus cães que se deitam aos pés das pessoas e parecem adivinhar a linguagem monstruosa
das narinas resfolegando

se a maldição for tanta e tão perfídia
que eu te esqueça na morte, que eu te esqueça


2


em 1973 ponho de parte alguns
alibis a começar pelo da fealdade própria
que mais me serve e tu soubeste
sempre para fingir libertino

tento aprender um jogo
afinal simples: desnudar-me e logo depois um outro:
revestir-me em quatro segundos ao cronómetro
pensava eu na minha que se deve à amada
tudo inclusive o espectáculo íntimo

entretanto falhamos porque estas coisas batem
no plexo solar viciam o salto
vamos dar com os cornos tristemente
no sítio onde a piscina é mais baixa

a sopa diante, escalda; e rias-te


3


e vá-se-me dos dedos toda a agilidade escrevente
que eu possa já ditar só metades de versos

e que ao oitavo dia se me fujam
as referências do mundo visível

que eu dure sem préstimo lá ao canto
ao pé da telefonia, «o manto de lã»

e as filhas venham casadas e com filhos
tentar amar esse madeiro podre

se a maldição for tanta que na morte
do entendimento se me vá teu cheiro


4


é inacreditável como há dezassete anos
comecei a geração contigo
num ferry-boat sobre o moliço

lembro-me do jeito romantik
da cena: os lenços
os lenços brancos as lágrimas

e eu de pé na popa como se um deus
malicioso me escolhesse
para troféu de Verão


5


de todas a mais volátil
é a categoria tempo


6


a palavra não vinha
eu sentia-me cobrir lentamente de
com esse bolor espesso o Inverno
esfregava o pulso

ainda não havia as filhas
dando gritos que entontecem as agulhas do sangue
passa-se em Coimbra num ano da adolescência

talvez exista (a poesia) tarde apenas
talvez como os foguetes que sobem

talvez tu propícia


7


eu sobreviveria ainda horas infinitas
se não tivesses trazido o primeiro espelho

foi a minha primeira morte quase
imponderável quase ao miligrama

pequeno coágulo em trânsito
nos medos da cabeça

(quando as águas grossas se apartaram
encomendei-me nu como já leste

em 2: a um resto a uma palha
que o vento às vezes s'acudia)


8


mas segundo o discurso «em voga»
maldita seja a sorte que na morte
da forte vida sobre as patas
me tenha em locus solus
e derramem-se-me os óleos
do coração e a
vista se me feche e cuspam
de longe neste gafo

se for para calar-me e não disser
o teu nome no fim, sempre o teu nome


9


não pude amar mais nada
não pude mais ninguém
e mesmo que te minta
é o contrário disso

e mesmo que te minta
é a verdade seca
posta ali às avessas;
não pude amar mais claro 


10


o copo sobre a mesa
transparente
para ser cheio
da tua vida
espessa até ao cimo


11


ajudado por ti é que me fui
à pedra das palavras
e sou isto agora: duro
artesão perecível


12


e os aterros rebentem como em 1755
por onde andei perdido
claridade, buscando-te

Heildelberg Mannheim Neckarstadt
Fort William Inverness à boleia
Santander (na mesa de Ridruejo)
Annecy a do lago Metz
um Agosto violento

se meus pés se afastarem
aquel metro que seja
que não é amor já


13


no ano em que eu era comido pelo escorbuto
chegavam as tuas enviadas com limões de oiro

tu própria ias dessedentando a boca da viola
para salvar-me o canto

eis a ditosa amada, escrevi então
minha pátria


14


mulher pela casa fora pastora do meu sexo
de manhã perdida à tarde encontrada
afinal parecida com o líquen sobre as árvores

e outra vez
sem medo nem cuidado amar morrer

vozes falam de ti durante o dia
luzes brancas na bruma
frechas do sangue

ao tempo em que aprendias e depois
amor quase a tristeza

e depois amor quase gritaste


15


um relâmpago assombra
esta nudez

entra pelo sexo

calcina
as espirais da melancolia

e eu ardo (ardo!)
em lavaredas altas

resina indefesa


16


era uma filha que chorava 
quem estava olhando sem olhar
com um olhar húmido ainda
desse teu ventre que é o mar

quem com a boca não falava
mas após mim há-de ficar
para apostar candidamente
a quem um dia perguntar

por este pai que lhe cantava
e a olhava com um olhar
prendido a ti e ao singular
olhar que tens, que é como o mar


17


amo-te amo-te muito
e acabo aqui

há o sol que regressa
todos os dias; brilho de cabaça; clarão feliz
entre as mimosas

mas tu mais do que nada eras por mim amada tu
sem preço defendias-me
dos gusanos e outros vermos
no que há dentro do peito coração

por isso muito amada e tanto
que desta me quisera
ir vendo-te confesso devagar
aonde agora e sempre
umágua leve
te repartes


final

ó alegria igual a nada mais
fogo dos seios brunidos
boca de sal

mulher agora
depois do amor sentada
por dentro do sorriso
à beira da noite

enquanto
lá fora as últimas 
aves recolhem pela vinha


Fernando Assis Pacheco
A Musa Irregular
Assírio & Alvim 


nota: o negrito é edição minha. destaques meus.

com a tua letra


Porque eu amo-te, quer dizer, estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.

Fernando Assis Pacheco
A Musa Irregular,
Assírio & Alvim 

Um campo batido pela brisa


A tua nudez inquieta-me.
Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.

A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.

Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho «um pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com a mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.

Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês,
eu ando corajoso e sem disfarce,
iluminado, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.

Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.


Fernando Assis Pacheco
A Musa Irregular,
Assírio & Alvim