(SJ-06)


as formas de conhecer-te 
são só duas
ou três; esta é a que demora mais tempo.
a chuva parou e continuamos distraídos neste
amor de cabotagem, nunca demasiado
longe ou perto da carne e dos orgãos que uma
abóbada de ossos protege. cumprimos
a liturgia das horas, repetida sem convicção ou
eficácia, e por vezes as palavras começam
a fazer sentido, como os gestos com que
te aproximo de mim, com uma só mão
e algum sono. uma navegação lenta,
familiar e confortável, porque
essa é a melhor forma de te conhecer
os dedos e o modo como os usas
para fazer tranças às horas, como quem
tece cabelos ou desfia um rosário
sem murmúrios, apenas a técnica de rodar
terços e mistérios no fundo da mão
para entreter os pretendentes e
esperar que eu regresse das longas
viagens - dez anos de cada vez -
em que me ausento sem sair de casa.
esta tarde estive em Lisboa e trago-te maçãs
vermelhas de uma mercearia da rua dos Lusíadas,
com as quais tenciono adormecer-te (como
na história que contamos todas as noites), porque
é essa a única forma de te conhecer
os medos e interpretar os sonhos, escrever
ao teu lado, enquanto dormes, a lista
das tarefas diárias com que nos ocupamos a
matar o tempo.
 
 
Tiago Araújo

 

 

(sábado)

a manhã ainda pode ser salva se o tempo
mudar ou o café forte quebrar o vidro entre o som
e o sentido destas frases que recito em jejum
de um jornal atrasado. dormi mais do que o habitual,
entre papéis e o som distante do telefone,
um despertador absorvido pelo sonho. ao acordar não
consegui ler nas folhas do chá de ontem, despejado frio
pela banca da cozinha, o que farei com os restos de liberdade
que me sobraram do dia anterior.
na infância ensinaram-me como é perigoso
acordar um sonâmbulo, lição que tenho
aplicado de forma exemplar em relação a mim próprio.
o equilíbrio entre os dias e as noites foi-se alterando
de modo progressivo. ouço ao longe,
pela janela aberta, os sons do
carnaval de notting hill, um sinal de que o
verão terminou. queimo os cravos da mão esquerda, a mão
cega que não tem recebido todo o prazer ou o
reconhecimento que merece. chove.
e é tudo, descrição sem análise, na luz filtrada
de um dia em que se morre mais lentamente que nos anteriores.
daqui a pouco sairemos para as ruas de comércio, cais
onde se vão saudar paquetes
que já partiram, nas tardes de sábado, para nos perdermos
entre o ruído e o excesso de informação que
caracterizam o século vinte e um, sem
que ninguém repare que saí à rua sem o desejo vestido.
a cidade deixou de ser um mapa e, passado um ano, leio o nome das ruas
como quem incendeia os barcos à chegada a terra
para não ter forma de regressar a casa."

Tiago Araújo

via Poems from the Portuguese, a seguir.