antes da palavra


hesito muito antes da palavra.
porque um precipício se abre nela
e não tem sentido, vibra apenas.
porque pode ser a morte
ou o nascimento para um lugar 
de cores e fadas e barcos de sol. 
porque me doem as mãos
cada vez que tento segurar
o mundo em traços redondos quadrados.

por isso te digo: hesito e morro e nasço.
e corro para a rua com a força de quem 
vai anunciar gritar chamar dizer.
mas lá fora sorrio apenas
enquanto caminho para um banco
de jardim, devagarinho,
como se por um momento
eu soubesse o nome de tudo
e tudo tivesse o mesmo nome.


Vasco Gato
"Um Mover de Mão"
Assírio & Alvim

 

 

Quando a noite toca os teus pulsos


quando a noite toca os teus pulsos
rebentam em ternura as açucenas
e o mais das flores se inclina
para o peito, o ventre, o calor
desta vida que brilha ao sul.

dá-me a tua mão, dizes,
quero ter contigo o relâmpago
que incendeia na terra os cereais
e no coração desperta as romãs.

procuro árvores, pé após pé.
na sombra da tua palavra
busco o derradeiro acordar das estrelas
e demoro-me em silêncio
na interrogação dos planetas.

e quando a noite toca os teus pulsos
dá-se em mim uma vida maior
e das janelas apago os olhares
para ficar a sós contigo
no suspiro da terra que nos inventa.

Um Mover de Mão,
Vasco Gato
Assírio & Alvim
2000

Mímica

Pode a noite doer
se as mãos tocarem a sua própria pureza
e houver um ponto negro ao centro

Quando no pulso
parece crescer uma pequena solidão
como se o espaço se afastasse e de repente
um véu cobrisse
todas as memórias futuras

Pode a noite tremer assim
para que os muros se abram ao meio

Para que a transparência dos gestos
publique essa mímica oculta
antiga intimidade

imo,
Vasco Gato
quasi
2003