Grão Único

 
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Sofro de síndrome do impostor, a minha auto-estima está frequentemente nas lonas e sentir que não sou capaz e que talvez seja melhor nem tentar é constante nos meus dias. Isto significa que carrego em cima a responsabilidade de me consolar e me lembrar, diariamente, que sim, sou capaz, que tenho um mundo dentro de mim, que sou um grãozinho deste universo mas que não há outro grão igual a mim. Isto é muito cansativo, porque é mais fácil deixar que a outra voz me guie - mais confortável, mais quentinho, o caminho seguro e que já conheço - do que me impor sobre ela e tornar visível tudo o que trago dentro.

Esta foto que escolhi é a ilustração perfeita de tudo o que tenho sentido: um caos controlado. É assim que vou, nem demasiado quente nem demasiado frio. Morno. Porque assim agrado a toda a gente. Não ando nua pela casa, não uso vestidos, porque não tenho um corpo perfeito, dizem as vozes cá dentro. Não vou colocar esta foto nem sequer tirá-la, porque não quero destoar nesta montra linda que são as redes sociais.

Comentava ontem com uma amiga uma imagem muito clara que me veio à ideia durante o fim de semana: algures, no meu crescimento, coloquei-me uma presilha de segurança. Fui eu que a coloquei. Nem demasiado isto, nem demasiado aquilo, ficas assim que assim ninguém tem o que dizer. E agora? agora tenho vontade de rebentar esta merda toda. Quero a verdade, o cru, o real, quero o caos! Quero as linhas espalhadas pelo espaço - sem me preocupar em ir buscar o aspirador para ir limpando - quero ler mais do que um livro ao mesmo tempo e ser capaz de os deixar a meio se assim me apetecer - sem me sentir culpada, porque tenho a sensação que o Bolaño me culpa do além por ter largado o "2666". Quero poder escrever "matei mais uma planta", porque acontece, elas não estão sempre lindas e perfeitas para uma foto de instagram, são seres vivos como nós. Não somos "picture perfect", não vivemos vidas perfeitas, vivemos vidas reais, imperfeitas e que, na sua imperfeição, são tão lindas! Caramba, se não há beleza mais bonita do que a da vida que acontece.

Eu quero sentir-me bonita, capaz e única, não quero sentir que tenho de corresponder a estes padrões de perfeição impossíveis. Quero ter a liberdade de escrever aqui que me sentei a escrever com remelas nos olhos e os dentes por lavar e que, muito provavelmente, não tarda cai trabalho e me vou lembrar de lavar os dentes lá para as 19h da noite. E ninguém faleceu por isso, nem vou ser condenada em praça pública. Quero sujar-me, quero criar, quero estar viva!
"Estás a escrever tudo isto para colocar justamente no sítio que tanto criticas" diz-me esta voz, e eu quase desisto de ir em frente, mas depois lembro-me que sou um grãozinho único no meio de tantos outros grãozinhos únicos que talvez sintam o mesmo que eu. E eu quero dizer-lhes que há um mundo inteiro dentro de cada um de nós à espera que tiremos as presilhas de segurança.

(post original para instagram)

Procura a Maravilha

Há dias em que acordo com a cabeça cheia de nada, entro em piloto automático e só desperto, verdadeiramente, com a torrada à minha frente. Outros há em que acordo a cantar - o meu irmão vai rir-se disto, sempre tive muito mau acordar e ele, como músico da casa, era a alegria das manhãs, pelo que não me orgulho das vezes em que me imaginei a esganar-lhe o pescoço. Nos dias em que o cansaço me vence, sonho muito, e de manhã ando pela casa a deslindar significados, fechada sobre mim mesma em busca de conexões (sou de sinais). Hoje, acordei com este verso - "Procura a maravilha" -, mas de onde raio veio? Repeti-o para mim, depois repeti-o em voz alta, devagarinho - "Procura. A Maravilha." - e olhei em redor, para a luz que entrava pelo quarto e inundava a cama desfeita. Olhei-me ao espelho, e a leveza que trago no peito traduziu-se num sorriso - "procura a maravilha" - e, enquanto me olhava, vi em mim "todos os sonhos do mundo".

Entrei, oficialmente, em época de balanços, o meu ano vira a 18 e não a 31, sempre o foi assim. É a altura que mais gosto do ano, mas também a que me traz ao mais fundo de mim e, por isso, também aquela em que me confronto com a dor de (cres)ser, é a altura em que traço os meus objectivos para o próximo ano e em que coloco em papel todos os meus sonhos - e, caramba, se a completar os 34 anos não sonho mais do que em toda a minha vida!

“(…) ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...”

Quanto à maravilha, já dizia Fernando Pessoa, é:

Pego na caneta e traço um primeiro objectivo para esta 35ª volta ao sol que se inicia: “Procura a maravilha”. Procurem a maravilha.

 

Procura a maravilha.

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.


- Eugénio de Andrade

 

Não vivo devagar...

Tell me, what is it you plan to do with your one wild and precious life?
— Mary Oliver

Não vivo devagar se em vez de estar a viver o momento, estou a fotografá-lo.
Não vivo devagar se almoço a pensar no que há para fazer à tarde.
Não vivo devagar se agarro no telemóvel para ver as horas e 20min depois ainda estou agarrada a ele a correr o feed do facebook.
Não vivo devagar se coloco o telemóvel em cima da mesa enquanto janto com amigos.
Não vivo devagar se opto por levar o carro em vez de ir a pé.
Não vivo devagar quando à pergunta “o que vamos fazer?” respondo “qualquer coisa”.
Não vivo devagar se o reflexo do espelho tem mais importância do que um elogio.
Não vivo devagar quando as opiniões dos outros me prostram.
Não vivo devagar, nem vivo… quando vivemos presos nesta roda de hamster construída por nós e acreditamos ser livres.

E vocês, estão realmente a viver?

Manéis.

 
Wear your heart on your skin in this life.
— Sylvia Plath

Adoro acordar cedo aos domingos, talvez porque me saiba sempre a infância, aos dias sem pressas. Levanto-me e abro as janelas de par em par, deixo o sol entrar. Estendo a roupa e preparo um pequeno-almoço vagaroso. Gosto de cozinhar aos domingos, a falta de horários dá-me espaço para aproveitar cada momento. É quando faço panquecas e um bolo, ou quando encho a mesa de petiscos para irmos depenicando durante o dia.

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Gosto mesmo de domingos, domingos vagarosos, destes sem horas em que posso passar que tempos a olhar os gatos, a vê-los ser gatos, a aprender-lhes a lentidão dos gestos, a presença total. Isto de viver devagar tem muito que se lhe diga, se há dias em que me vou lembrando de estar presente, outros há em que as tarefas se atropelam e, quando dou pelo dia, já era. É então, aos domingos, que aprendo este ofício de ser e estar presente em tudo o que faço. Rego as plantas e retiro as folhas soltas, cuido a casa, leio, ou escrevo, mas deixo sempre espaço para o nada, esse vazio tão cheio de presente. É quando me sinto mais viva.

Hoje tem sido assim, a casa cheia desta luz dourada, o cheiro da roupa lavada que entra pelas janelas abertas e os gatos que vão dormitando aqui e ali. Foi por isso que escolhi este dia para honrar uma memória muito querida da minha mãe: fazer “Manéis”. Os “Manéis” eram uns bolinhos que a minha mãe fazia, numas forminhas muito antigas de folha de flandres, para o meu avô, que se chamava Manuel e era um guloso.

A semana passada, quando fui visitar os meus pais, encontrei as forminhas - “QUE LINDAS!!!” - exclamei, desgastadas pelo tempo e pelo uso mas tão lindas quanto a sua história, imaginem. “O quê?” - respondeu a minha mãe, que me ouvira da sala. “ISTO” - mostrava-lhe eu, carregando as 12 forminhas como a um tesouro. Ela sorriu - “São as forminhas dos Manéis, os bolinhos que eu fazia para o teu avô e que ele adorava. Chamam-se Manéis por causa dele. Leva-as, quando casei levei-as comigo, agora são tuas junto com a receita”. E eu, que uso o coração na pele, emocionei-me, está claro, não fosse eu, eu.

Bem cedo, enquanto o resto da casa ainda dormia, levantei-me e fui fazer “Manéis”, não poderia ser num outro dia qualquer, tinha de ser assim, neste domingo vagaroso de sol, numa mesa cheia de um pequeno-almoço sem pressas, com o André e o nosso sobrinho Gui, que nunca conheceram o meu avô mas que levarão dele o sorriso malandro, as flores, os gatos, a calma, as mãos nas bochechas ao topo da mesa e os “Manéis”, que é parte do que guardo em mim deste ser especial que foi o meu avô.