aceito.

20 de março


... 
as mãos esgueiram-se para dentro da insónia. eis a noite da noite onde abro e folheio livros, ouço murmúrios, crescem líquenes, exalam-se perfumes a tinta fresca, desprendem-se sílabas de vidro. eis a noite onde esqueço a vida e cismo sobre aquilo que ainda não sonhei. e aceito como único presságio a melancolia aérea das açucenas. aceito como único consolo a desolação imensa dos teus braços. aceito, aceito como único calor o da tâmara crescendo no deserto. aceito como único vício aquele cuja pele ainda não toquei. aceito como única noite a das searas do fundo do mar. aceito como única fala possível aquela que é susceptível de rasgar pulsos. aceito como único corpo aquele que não cresceu dos relógios do mundo. aceito, aceito como único sonho aquele espelho onde te reflectes e me encontro...

Al Berto
O Medo,
Assírio & Alvim 

Obrigada pelo Lume


"(...) creio que tens o direito de te sentires pleno; confesso-te que para mim foi uma verdadeira crise; mas de repente vi claramente, vi que a morte está sempre a vingar-se das nossas vacilações; a nossa vida compõe-se de três etapas: vacilar, vacilar e morrer; a morte, em troca, não vacila diante de nós; mata-nos e acabou-se; e o grande espião, o formidável quinto pilar que a morte instalou em nós, chama-se escrúpulo; já sei, eu tenho escrúpulo, tu também, compreende que não estou contra o escrúpulo; mas é o quinto pilar da morte; porque graças ao escrúpulo, vacilamos, e passa-nos o tempo de gozar, de gozar esse minuto feliz que, como graça especial, foi incluído no nosso programa; passamos toda a vida a sonhar, com desejos incumpridos, recordando cicatrizes, construindo artificial e mentirosamente o que podíamos ter sido; constantemente estamos a travar-nos, a conter-nos constantemente, estamos a enganar e a enganar-nos; cada vez somos menos verdadeiros, mais hipócritas; cada vez temos mais vergonha da nossa verdade; (...)"

Mario Benedetti
Obrigada pelo Lume,
Cavalo de Ferro 
2008 

Estilo

 - Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende?… a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas? ou meses ou anos?

(…)

Herberto Helder
Os Passos em Volta,
Assírio & Alvim 2001