As poucas palavras

 
Nós. Abril, 2013

Nós. Abril, 2013


Foi um dia, e outro dia, e outro ainda.
Só isso: o céu azul, a sombra lisa,
o livro aberto.
E algumas palavras. Poucas,
ditas como por acaso.

Eram contudo palavras de amor.
Não propriamente ditas,
antes adivinhadas. Ou só pressentidas.
Como folhas verdes de passagem.
Um verde, digamos, brilhante,
de laranjeiras.

Foi como se de repente chovesse:
as folhas, quero dizer, as palavras
brilharam. Não que fossem ditas,
mas eram de amor, embora só adivinhadas.
Por isso brilhavam. Como folhas
molhadas.


Eugénio de Andrade 

 

Ars Poetica

Um poema deve ser palpável e mudo
como o fruto em globo

Calado
como antigos medalhões nos dedos

Silente como a pedra gasta por mangas
em umbrais onde o musgo cresceu -

Um poema deve ser sem palavras
como o voo das aves

Um poema deve ser imóvel no tempo
como a lua sobe

Largando, como a lua solta
ramo a ramo as árvores presas na noite,

largando, como a luz atrás do inverno larga
memória a memória, o espírito -

Um poema deve ser imóvel no tempo
como a lua sobe

Um poema deve ser igual a -
não «verdadeiro»

Porque toda a história da dor
uma porta vazia e uma folha de plátano

Porque o amor
as ervas que se curvam e duas luzes acima do mar

Um poema não deve significar
mas ser.


Archibald Macleish
Poesia do Século XX
(de Thomas Hardy a C.V. Cattaneo),

Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena
Editorial Inova/Porto 

«Viajar assim no tempo é cansativo, com o passado a balançar de forma horrível.»


2.

Movimentos maiores e mais livres,
cobertura mínima em caso de catástrofe,
esta música tem o mesmo que este whisky:
a grande surpresa dos ossos.

Viajar assim no tempo é cansativo, com o passado
a balançar de forma horrível. Companheiro,
equilibra-te, é tudo uma questão de aprumo.
Quem faz a segunda voz? Qual de nós

presta atenção aos movimentos da terra?
Aproxima-te do espelho. Tu sabes quem sou,
o que fiz, a que pressão fui sujeito. Além do mais,
é bom ver-te. Não tenho com quem falar.

Vítor Nogueira
Ladrador,
Averno 

(SJ-06)


as formas de conhecer-te 
são só duas
ou três; esta é a que demora mais tempo.
a chuva parou e continuamos distraídos neste
amor de cabotagem, nunca demasiado
longe ou perto da carne e dos orgãos que uma
abóbada de ossos protege. cumprimos
a liturgia das horas, repetida sem convicção ou
eficácia, e por vezes as palavras começam
a fazer sentido, como os gestos com que
te aproximo de mim, com uma só mão
e algum sono. uma navegação lenta,
familiar e confortável, porque
essa é a melhor forma de te conhecer
os dedos e o modo como os usas
para fazer tranças às horas, como quem
tece cabelos ou desfia um rosário
sem murmúrios, apenas a técnica de rodar
terços e mistérios no fundo da mão
para entreter os pretendentes e
esperar que eu regresse das longas
viagens - dez anos de cada vez -
em que me ausento sem sair de casa.
esta tarde estive em Lisboa e trago-te maçãs
vermelhas de uma mercearia da rua dos Lusíadas,
com as quais tenciono adormecer-te (como
na história que contamos todas as noites), porque
é essa a única forma de te conhecer
os medos e interpretar os sonhos, escrever
ao teu lado, enquanto dormes, a lista
das tarefas diárias com que nos ocupamos a
matar o tempo.
 
 
Tiago Araújo