No amor só se entra descalço

É difícil escrever sobre o amor quando o prendemos a um rosto, é difícil porque amar nos confronta com a nossa própria mortalidade. Queremos ter tempo para viver o amor e o tempo escorre-se-nos pelos dedos.

É difícil escrever sobre o amor porque temos vergonha de mostrar ao mundo o amor lamechas, o amor fofinho, o amor vulnerável que dá o coração às balas sem nunca perder o sorriso tonto.

O Manuel António Pina escreveu um poema cujo verso final me ficou gravado, talvez o eternize na pele, um dia, como lembrete de que no amor só se entra descalço.

”entro no amor como em casa”
(este é o teu gatilho de escrita, abensonhado*)

(as participações podem ser, ou não, partilhadas, públicas ou anónimas, ditas ou escritas, o teu coração o saberá, dá-lhe a palavra)

*expressão adoptada do inspirador Mia Couto, junção das palavras “abençoado” + “sonhado”, que são vocês.

Escrevo para (me) entender o mundo.

Escrevo para (me) entender o mundo.

É fuga, terapia e abraço.

Escrevo porque sinto raiva, porque o tempo escapa e porque preciso de o agarrar. Por amor, de loucura e de saudade. Escrevo porque a cafeteira italiana estava tão bonita, ao lume, que o meu coração não aguentou. Ou porque a lembrança do teu gesto na barba me entrou de rompante escancarando a porta entreaberta. Escrevo porque a vida é demasiado e porque não tenho outra forma de dizer "estou presente" sempre que a luz da manhã enche o quarto.
Hoje abri as janelas e a rua cheirava a mar, quis escrever sobre isto mas percebi que, para mim, tudo já estava dito. Ainda assim, serviu me de pretexto para vos falar de tudo isto que é a escrita para mim. E isto é bonito porque sei que para qualquer outra pessoa, esta mesma frase, será um "gatilho" diferente.

Recebi muitas respostas interessantes sobre isto da escrita e de se manter com foco, e alimento criativo, um blogue. Também fiquei a conhecer projectos incríveis que me inspiraram muito e me fizeram sonhar. Obrigada!

Então hoje, se leste tudo isto até aqui, proponho-te um desafio que poderás - ou não - partilhar (de forma privada) comigo. O caminho é pelo coração. Que estas palavras te sejam gatilho: "Hoje abri as janelas e a rua cheirava a mar"

(post original para instagram)

Grão Único

 
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Sofro de síndrome do impostor, a minha auto-estima está frequentemente nas lonas e sentir que não sou capaz e que talvez seja melhor nem tentar é constante nos meus dias. Isto significa que carrego em cima a responsabilidade de me consolar e me lembrar, diariamente, que sim, sou capaz, que tenho um mundo dentro de mim, que sou um grãozinho deste universo mas que não há outro grão igual a mim. Isto é muito cansativo, porque é mais fácil deixar que a outra voz me guie - mais confortável, mais quentinho, o caminho seguro e que já conheço - do que me impor sobre ela e tornar visível tudo o que trago dentro.

Esta foto que escolhi é a ilustração perfeita de tudo o que tenho sentido: um caos controlado. É assim que vou, nem demasiado quente nem demasiado frio. Morno. Porque assim agrado a toda a gente. Não ando nua pela casa, não uso vestidos, porque não tenho um corpo perfeito, dizem as vozes cá dentro. Não vou colocar esta foto nem sequer tirá-la, porque não quero destoar nesta montra linda que são as redes sociais.

Comentava ontem com uma amiga uma imagem muito clara que me veio à ideia durante o fim de semana: algures, no meu crescimento, coloquei-me uma presilha de segurança. Fui eu que a coloquei. Nem demasiado isto, nem demasiado aquilo, ficas assim que assim ninguém tem o que dizer. E agora? agora tenho vontade de rebentar esta merda toda. Quero a verdade, o cru, o real, quero o caos! Quero as linhas espalhadas pelo espaço - sem me preocupar em ir buscar o aspirador para ir limpando - quero ler mais do que um livro ao mesmo tempo e ser capaz de os deixar a meio se assim me apetecer - sem me sentir culpada, porque tenho a sensação que o Bolaño me culpa do além por ter largado o "2666". Quero poder escrever "matei mais uma planta", porque acontece, elas não estão sempre lindas e perfeitas para uma foto de instagram, são seres vivos como nós. Não somos "picture perfect", não vivemos vidas perfeitas, vivemos vidas reais, imperfeitas e que, na sua imperfeição, são tão lindas! Caramba, se não há beleza mais bonita do que a da vida que acontece.

Eu quero sentir-me bonita, capaz e única, não quero sentir que tenho de corresponder a estes padrões de perfeição impossíveis. Quero ter a liberdade de escrever aqui que me sentei a escrever com remelas nos olhos e os dentes por lavar e que, muito provavelmente, não tarda cai trabalho e me vou lembrar de lavar os dentes lá para as 19h da noite. E ninguém faleceu por isso, nem vou ser condenada em praça pública. Quero sujar-me, quero criar, quero estar viva!
"Estás a escrever tudo isto para colocar justamente no sítio que tanto criticas" diz-me esta voz, e eu quase desisto de ir em frente, mas depois lembro-me que sou um grãozinho único no meio de tantos outros grãozinhos únicos que talvez sintam o mesmo que eu. E eu quero dizer-lhes que há um mundo inteiro dentro de cada um de nós à espera que tiremos as presilhas de segurança.

(post original para instagram)