Sr. do Polo Cinzento Claro

Sento-me em frente à página em branco, ando assombrada com isto.

”Precisas de escrever”, escuto-me.
”Eu sei” — , resmungo internamente enquanto pontapeio uma pedra imaginária. Movo-me para lá e para cá, passos pesados e ombros descaídos — “Não tenho nada a dizer”.

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É que os dias não fazem mais do que atropelar-se um atrás do outro, atrás do outro. Olho-me ao espelho “mais um cabelo branco, ia jurar que esta ruga não estava aqui, as minhas pernas pareciam mais firmes, mas onde raio andei para não me ter visto?”. Trato dos gatos, despejo o café no leite, espalho o doce na torrada e olho de relance a cozinha atrás de mim “tudo pronto”.

Venho a engolir a torrada para o escritório e dou mais 3 golos no galão enquanto ligo o computador. Passo os olhos na lista das tarefas e espreito o whatsapp. Terei de refazer a lista toda assim que as notificações começarem a cair. Respiro fundo. Olho a janela, os carros passam lá fora, um atrás do outro, atrás do outro, não reparo nas cores, nos modelos, mas posso jurar que são os mesmos que aqui passaram ontem, e anteontem, e que continuarão a passar amanhã, depois de amanhã… até ao dia em que o Sr. do Polo Cinzento Claro diga de si para consigo que “Já chega! Vou abalar daqui para fora mais a Amélia, amanhã compro umas sementes no mercado e só me apanham em Vila Real”.

E eu, juro, dou por mim com ciúmes do Sr. do Polo Cinzento Claro, não me apanham a cavar a horta — gente, há que ser realista, né? — mas caramba, se não fechava já estas 37 tabs abertas do browser e me atirava sem pestanejar a uma vida de terraço florido, com mobília de madeira antiga, pão fresco e limonada.

 

Photo by Harry Grout on Unsplash

 

Gerir expectativas é a filha da putice.

Gerir expectativas é a filha da putice. Achamos que temos tudo controlado, previmos qualquer cenário, entramos de cabeça erguida e prontos para o que der e vier - afinal, em teoria, sabemos o que pode vir, de onde poderá vir e que danos provocará.

Este fim de semana vi o Grande Prémio da Rússia de Fórmula 1, quando era miúda lembro-me do meu pai não perder uma corrida, o som dos carros - ainda que diferente - ainda me faz estremecer a espinha e arrepiar cada pêlo do corpo, afinal, cresci ao lado do autódromo do Estoril e os primeiros 10 anos da minha vida foram a par e passo do circuito. A memória é, portanto, sensorial, ainda que não percebesse patavina do que estava a ver até me inteirar da coisa - quase 30 anos mais tarde - e, por isso, este domingo, foi toda uma emoção. Uma espécie de nostalgia embrulhada com a aflição da corrida, vivi cada segundo daquela prova, colada ao ecrã, sem conseguir desviar a atenção. A velocidade com que tudo muda, as expectativas de como correrá: sabes de onde começas, sabes ao que vais mas, no fundo, nunca sabes verdadeiramente como terminas. O Verstappen iniciou corrida em P20, terminou em 2º lugar. O Norris em P01, fez uma corrida belíssima, mantendo afincadamente um 1º lugar com o Hamilton coladinho a ele… bastou uma decisão precipitada para cair.

“O que leva uma pessoa a correr?” Penso, enquanto os vejo. Há tanto que pode correr mal, há pouco que se possa controlar, conhece-se o desporto, conhece-se o carro, os componentes, a pista, prevê-se o tempo, estudam-se os adversários… mas nunca, nunca, é suficiente.

De repente, surge-me: “o que leva uma pessoa a amar?” e ouço as palavras do Schumacher: “I didn’t have statistics in my mind when I was racing. It was always a consequence – a nice consequence. I enjoyed it, but it wasn’t the reason I was racing.” nunca pensamos como vai correr, podemos montar cenários - bons ou maus - mas nunca sabemos verdadeiramente. Amamos porque amamos.

Entramos no carro, confiamos em quem está a nosso lado, aproveitamos cada momento da corrida. Nas corridas em que não levamos a melhor: limpamos as lágrimas, aceitamos o mar revolto que nos embarga a garganta e esperamos que as nuvens passem.

Amar e correr, até que deixe de fazer sentido.

 
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Foi abrir as janelas à manhã II

A casa dos avós do Marco Gil, fotografada por ele.

A casa dos avós do Marco Gil, fotografada por ele.

      Luís saíra para levar as crianças à escola, havia o autocarro que as levava da aldeia, mas nas manhãs em que era ele a vesti-los a brincadeira sobrepunha-se sempre a qualquer horário. Ela já havia descido para abrir as portadas à mercearia, o Sr. Manuel não tardava a trazer os cabazes com os produtos da sua horta e ela queria ligar tudo antes dele chegar.

      A mercearia funcionava no rés-do-chão da casa onde moravam, era uma casa alta de paredes brancas e janelas em toda a sua extensão. O espaço, que hoje dava lugar à mercearia, havia sido, em tempos, uma taberna, e as pessoas da aldeia ainda falavam disso, contavam histórias do tempo que lá passaram partilhando memórias de tempos felizes, mesmo quando não o eram, porque o trabalho era duro e a vida difícil, mas era como se aquele sítio houvesse sido um refúgio para os dias cinzentos. Quando Luís anunciara, na festa da aldeia, que o espaço reabriria ao público foi como se uma onda de ternura percorresse os rostos mais antigos.

      A casa manteve-se fechada durante muito tempo e era a mãe de Luís quem a cuidava, como se mantendo presente um passado que não sabia como largar. Quando ela engravidou foi como se o caminho a dois, que mal haviam traçado, se estendesse a seus pés. Luís queria regressar a Aldeia, fazia todo o sentido, a casa dos avós estava fechada há demasiado tempo e podiam arranjá-la eles mesmo e fazer dela a sua casa. Fora ali que crescera, que brincara, que havia sido feliz como não se lembrara mais, e queria para o bebé memórias tão felizes quanto as dele.

A casa dos avós do Marco Gil, fotografada por ele.

A casa dos avós do Marco Gil, fotografada por ele.

      Aproveitaram grande parte da mobília que já lá havia, ela gostava de mobília antiga, era como se lhe chegasse com muitas vidas dentro, perdia-se muitas vezes a imaginar como seria numa vida anterior à deles, como seria a casa, como se movimentavam nela, como seriam as suas rotinas. Na cozinha, tinham uma cristaleira que ela vira na taberna na noite em que ele a levara lá pela primeira vez, e era como ter uma espécie de memória que se materializava todos os dias, pelo pequeno-almoço. Recordava, com comoção, a preocupação de Luís quando ela o convenceu a restaurarem o móvel no terraço da casa. Ela estava grávida de 5 meses e estavam no pico do Verão, Luís tentara demovê-la por todos os meios, mas parecia que a gravidez ainda a tornava mais teimosa do que era e não teve outro remédio se não aceder. Fizeram um acordo, restaurariam o móvel ao pôr-do-sol se ela prometesse ir com ele, à lagoa, durante o dia - era a única forma de a manter sossegada, caso contrário daria com ela empoleirada em cadeiras a limpar os tectos - e ela concordou, ainda que impondo a condição de levar os seus livros. Dois, porque podia aborrecer-se. Ele riu alto.

      Fora o melhor Verão de que tinha memória e ela sentia-se mais mulher do que nunca, usara vestidos de algodão fino o Verão todo e andara descalça a maior parte do tempo. Adorava andar descalça, sentir a terra pulsar sobre a planta dos seus pés como se fizesse parte dela. Lembrava-se de como Luís a olhava, como a puxava pela cintura para junto dele, acariciando-lhe a barriga - “Vamos ter um bébé” -, dizia-lhe, e ela beijava-lhe o rosto bronzeado enquanto passava os dedos pelo seu cabelo.

O terraço da casa dos avós do Marco Gil, fotografado por ele.

O terraço da casa dos avós do Marco Gil, fotografado por ele.

      Os finais de dia no terraço, a restaurar a cristaleira, rapidamente se transformaram em noites de convívio. Os amigos apareciam, ao cair do sol, oferecendo ajuda e ela fazia limonada e servia scones, depois alguém trazia um pequeno grelhador, outro trazia uma garrafa de vinho, e as noites terminavam, já de madrugada, ao som de uma guitarra. Ao final do Verão já tinham restaurado mais móveis do que os que haviam planeado, e a casa compunha-se.