Um bocadinho mais do mundo.

A Matilde começou a caminhar ontem. Já o fazia agarrada às coisas, agarrada a nós, é muito cautelosa, arrisca mas sempre sentindo uma base segura. Ontem levantou-se sozinha, sem procurar apoio e começou a caminhar. Ainda não acredito que consegui apanhar em vídeo, foi tão rápido! Vi e revi o vídeo mais vezes do que será bonito admitir, os passinhos de teste, o olhar confiante que cruzava o meu, o sorriso e as gargalhadas de pura felicidade. A minha filha caminhou sozinha pela primeira vez, atravessou o quarto de uma ponta à outra. A minha filha caminhou sozinha e a cada passo tornou-se um bocadinho mais do mundo… um bocadinho menos minha.

Um bocadinho mais do mundo. Um bocadinho menos minha.

Estou tão feliz e tão assustada em partes iguais. O futuro sempre me causou ansiedade, mesmo sendo uma pessoa relativamente positiva, que acredita que tudo sempre correrá bem… mesmo quando não. Este blogue não é sobre política, mas ainda que não fale sobre isso, cada acto nosso tem de ser político, não existe outra forma, quando a nossa casa comum arde. À luz do que se vive estes dias nos EUA, não deixo de pensar que a minha filha caminha hoje para um mundo cujo futuro é assustador.

E eu não tenho outra hipótese se não arregaçar mangas e construir para ela um mundo melhor, e esse mundo começa para ela neste pedacinho de terra que pisa sorrindo.

 

Este leopardo, a que chamei “Tigre” a minha vida toda, foi-me oferecido pelo meu pai quando fiz 1 ano. Hoje é abraçado pela Matilde.

 

Depois dela.

Acordei com o gato Sebastião, mimado, a pedinchar mimo a horas indecentes da manhã. Levantei-me, espreitei a rua, estava escuro e frio, ainda tinha mais uma hora para dormir, voltei a deitar-me. Na cama, a Matilde já dera uma volta completa a dormir, assim que me deito, encaixa a cabeça debaixo do meu braço, o nariz quase toca a minha cintura. Há noites que se tem encaixado assim. Aos pés da cama dois gatos já ronronam. A gata aninha-se nas pernas do André, que esta noite foi delegado ao colchão no chão para dar espaço às acrobacias nocturnas da bébé.

Estico o meu braço, com a mão aconchego-lhe o fundo das costas, odeia ser tapada e geralmente acorda quando o faço, mas sei que se sente confortável quando a abraço assim.

Como era a vida antes dela chegar? Penso. Há dias em que sinto muitas saudades da Inês (das várias) que fui, dias em que questiono a decisão de querer ser mãe, principalmente nos dias em que maternar é demasiado doloroso (quando não?!). Quando o choro é dilacerante, quando as horas parecem não passar, quando todas as decisões parecem erradas.

Depois sinto o seu pequeno corpinho junto ao meu, o seu respirar, escuto o seu gargalhar, a forma como já responde ao que lhe pergunto, as relações que tece a seu redor, a forma como se move no mundo. De súbito, o passado já foi. Guardado num louceiro, à vista do recordar, mas longe o suficiente para dar espaço a este futuro que me entra de rompante peito adentro a cada despertar.

Vou levantar-me dentro de pouco tempo, iremos abrir juntas as janelas à manhã, dizer adeus aos autocarros amarelos que já passam lá em baixo e, com sorte, passará um comboio que levará com ele uma gargalhada da Matilde e um "não há" assim que a última carruagem desaparecer por detrás dos prédios.

 
 

Sobre a escrita e a memória feita presente.

No sábado consegui ver um filme, enquanto jantava no sofá, depois do A. se deitar com a bébé. Há muito que não o fazia, vou conseguindo ver séries, encaixando episódios aqui e ali, nos dias de maior carga mental, para desligar a cabeça (que ironia 🫠).

Queria um filme leve, que não me fizesse pensar na vida, mas que me levasse daqui por umas horas. E fê-lo, medíocre para filme leve, enredo previsível, falas meio forçadas, actores meh e com zero química. Tudo muito atabalhoado e a história que podia ter sido bem trabalhada deixou-se ficar pela superfície. Contudo, houve uma frase no final do filme que me ficou a entoar nas entranhas.

As personagens envolvem-se e acabam por se separar abruptamente, um ano mais tarde - assim o parece - reencontram-se “ao acaso”, e ela pede-lhe desculpa pela forma como tudo terminou. Escritora, e com um livro acabado de lançar, diz-lhe:

“- A questão é… tive saudades tuas. A cada minuto. E a escrita é assim. Permite-nos agarrar algo que perdemos. Então, fiz isso.”

E eu fiquei sentada no sofá, depois do filme terminar, a tentar digerir esta frase.

O A., numa conversa de fim de dia que tivemos há umas semanas, perguntava-me se eu já tinha deixado partir alguém da minha vida, deixar ir para sempre, não lembrar, não escrever, não forçar o reencontro, e a verdade é que não sei como se faz isso. É como se tivesse sempre toda a gente na minha vida, ainda que não, porque é só doido, porque não há tempo nem espaço mental ou emocional para ter toda a gente com quem privámos nos nossos dias, mas eu consigo falar com quem quer que seja do meu passado e tecer uma ponte para o agora. Simplesmente porque aquela pessoa guarda uma parte de mim, e eu guardo uma parte dela, por muito breve que tenha sido o encontro.

E quando a linha se destece, e os encontros se perdem para lá da memória… eu tenho a escrita. E na minha escrita tudo existe ao mesmo tempo. Tudo se conserva exactamente como foi. Numa folha de papel de arroz, muito fininha e gasta, ou num diário amarelado cheio de rabiscos, numa nota escondida no telemóvel, ou em partilhas no blogue. A escrita torna eterno o que nos vai dentro, talvez por isso também haja pedaços de nós que nunca ousamos escrever.

Escrever dá-me vida. Para quem, como eu, não lida bem com isto de se ser só uma coisa, permite-me, em parte, viver todas as vidas nesta mesma.

Pronto, era só isto que precisava de aqui trazer. O que pensam disto?

 
 

A dança ou o princípio da paixão.

"Cross, volta da senhora, mão na cintura."

2 beijos, no rosto, à despedida.
A mão que desliza do antebraço ao cotovelo, do cotovelo ao pulso e se demora nas pontas dos dedos.

"Mais perto."

O tempo suspenso que antecipa um beijo.

"Mais perto."

O toque, o arrepio, a inquietação, o calor. A música que apenas dois corpos escutam.

A paixão é um sítio de onde se regressa escancarado e desfeito. O amor é outra coisa.
A paixão rasga-nos a saia. Apaga as luzes. Rouba-nos pela cintura, esquece a comida ao lume. E vicia. A paixão vicia.
A paixão devia vir com termo de responsabilidade a assinar por ambas as partes.

 

Frederic Forest, Lovers - Etude 10