"As paredes da casa movem-se lentamente, estreitam-se...
Encolhes-te nos meus braços. Lá fora continua a chover, ou talvez só chova onde um morto dorme nos meus braços.
E tu sussurras:
- Não, não afastes a boca da minha orelha. Derrama dentro dela aquilo que não consegues dizer em voz alta.
E eu digo:
- As tuas mãos queimam-me a fala.
Tu sorris, e dizes:
- Vem, sem medo, pela aridez do meu corpo. No fundo de mim existe um poço onde guardo a tua imagem. É tempo de ta devolver. É tempo de te reconheceres nela, mesmo se envelheceu. Vem, e beija a morte; repete esse gesto, como nos livros antigos se ensina a fazer. Vem, o tempo urge... as constelações já iniciaram o movimento de mudança de hemisfério, e as dunas fenderam-se onde o mar avançou, e o mar toca-nos os olhos e o sono. Vem, antes que os cardos se espalhem com o vento, e a geada esconda a água dos poços, e a noite acabe, assim, sem prevenir, dentro duma mão que se fecha a luz. Vem, antes que os meus olhos só vejam o que tu não vês, e as minhas mãos já não toquem o que tu tocaste... e a tua boca se canse de procurar o que de ti ainda possuo, e do teu nome não reste mais que uma metade do meu."
al berto
Excerto de O Anjo Mudo,
Assírio & Alvim