são muitos os sentimentos que me atravessam o coração quando me falas em infância. atravessam-no como quem faz uma ponte entre o hoje e o ontem. sempre vivi mais o passado que o presente e ainda hoje, à luz destes meus (quase) 27 anos, é erro recorrente.
tenho memórias guardadas em cantinhos especiais do coração, escondidas por portas secretas, - lembras-te? como aquelas com que sonhamos - sim, com esta idade, porque a criança que fomos ainda o é.
avanço devagarinho, voltada para dentro, assim como quem se vira do avesso, devagarinho, com esta calma que só os crescidos conseguem ter quando se trata de coisas valiosas. caminho por entre as memórias do tempo que já foi, com medo de lhes tocar, com medo que se desfaçam em poeira, afasto uma cortina de tule, branco, e ouço a madeira ranger sob os meus passos, páro, à minha frente, numa parede nua, passam filmes da minha infância. consigo vê-la de vestidinho vermelho com bolsinhos de corda, bege. tem uma malinha a condizer e os sapatos, novos, beijados de véspera. ela ainda não o sabe, mas é o dia mais importante da sua vida. estamos em 1988 e ela também ignora esse facto, tem 2 anos e 8 meses e parece uma menina crescida. lá dentro está um bébé, mas ainda não a deixam entrar, espera nas escadas, daquela maternidade velhinha. não sei se é dia 23, se 24, sei que lá dentro está o meu irmão, embora só a consiga ver a ela. lá dentro estão os meus pais, aqui está a minha vida. aqui começou a minha vida.
*texto a pedido de um amigo