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o que verdadeiramente me dói não são as palavras
que nestes anos todos ficaram por dizer
arrumadas entre os medos que não gritámos juntos
e os sonhos que não transpirei na tua pele

o que verdadeiramente me dói são os silêncios
que nunca habitámos do mesmo lado
porque o silêncio só pode ser partilhado
com aqueles que amamos até à loucura
só ele é a dádiva perfeita que não pede mais nada
a não ser um mesmo lugar para deitar a cabeça
e esperar que a madrugada lentamente desfaça
todos os segredos e nada mais seja preciso
para voltarmos a ter vinte anos mesmo que
os vinte anos tenham morrido para sempre
na cidade em chamas

nunca os meus olhos guardaram imagem mais nítida
que a tua entre os maços de gitanes
e a poeira de maio

no minúsculo quarto em que tentámos acreditar
no futuro que não iria ser o de ninguém
e no entanto tu olhavas para mim e dizias este
será o lugar onde havemos de morrer
e os nossos amigos marcavam encontros
para as tardes em que estaríamos ali sozinhos
à lareira de pacíficos invernos familiares

hoje sei
que te devia ter colado então ao meu silêncio
para que levasses no fundo dos teus olhos
a cor dos meus
ainda que totalmente despidos de ti
mas não fui a tempo e alguém junto a nós disse
as pequenas mentiras mordem até ao fim
e eu comecei a falar de outras coisas
mas foi isso tenho a certeza que nos matou
por isso te peço agora ajuda-me
a não pecar outra vez do mesmo modo
para que os deuses não se cansem
de voltarem a pôr tudo no lugar certo

olha para mim não tenhas medo dá-me
camélias cravos azáleas o que houver
descobre a única palavra verdadeiramente nossa
a única a poder ensinar-nos ainda o rasto

das noites em que a cidade era um braseiro
e nós ardíamos no lume das pedras e das nossas línguas
enquanto os pardais se confundiam na vidraça
das janelas que escancarávamos por maio fora

e de repente eu disse os nossos filhos
vão ver um dia este retrato e querer saber
o que aconteceu
- mas nesse momento em que já dificilmente
se articulavam as palavras
tu olhaste as horas e desceste as escadas em silêncio
porque assim eu tinha pedido que fizesses

e a dona do hotel a prometer-nos
para além de domingos de sol
despedidas breves e indolores
 

 

Alice Vieira
Cinco breves momentos de maio

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Ainda hoje me arrepio. A quase certeza que ambos sentimos. O abanão. Foi assim, há uns anos atrás, que descobri e partilhei este poema. Hoje partilho-o porque há coisas que devem permanecer. Como uma luz de presença.  


12

até pode ser que nem gostes muito destas palavras
nem de mim agora que os meus gestos
são tão diferentes
agora que recordas tanta coisa que eu esqueci
e ainda bem ninguém pode viver
com o peso do que ficou para trás
agora que os livros as canções as laranjeiras
ficaram para sempre naquele cenário de primavera
que fazia de nós todos o garantiam
presas tão fáceis

pressinto que hás-de culpar-me sempre
pelos anos que perdemos por becos ruas avenidas
esquecendo à toa aquilo
que só um ao outro deveríamos ter ensinado

talvez até tenhas razão mas eu chegara
àquele lugar da vida onde só se pode
amar para sempre e sem remédio
e de um dia para o outro a minha boca
desaprendeu disciplinadamente o sabor da tua
e os teus passos a tua voz o céu de paris
a janela sobre os telhados os domingos de sol
atravessaram as mais arrastadas fronteiras
e estabeleceram os seus limites do lado de lá
de todas as madrugadas que eram nossas

houve mesmo um tempo desculpa em que esqueci
as cartas os cigarros as fugas os recados
as canções as camélias o jardim
onde me esperavas às nove da manhã
a velha que nos olhava abanando a cabeça
entre estátuas decepadas e gatos vadios

talvez um dia quem sabe o destino
volte a ter novos contornos e nos olhe de frente
e ainda sobre tempo para reaprender a soletrar correctamente
todas as palavras que admitiam ter nascido
do teu corpo da tua voz do sabor da tua boca
tempo para povoar de novos sons os velhos discos de vinil
e sonhar com mundos à espera de serem salvos
pelas nossas palavras

tempo para nos olharmos e encontrarmos
sem remorsos
a maneira de nos perdermos de novo nos caminhos
que levam ao coração absoluto da terra

talvez um dia quem sabe eu volte
a faltar às aulas para esperar por ti

Alice Vieira