"We are flint and steel to each other."

Ontem choveu sem descanso
e fizemos tudo mal. São dias
de pedra e aço - alguém sabe 
onde nos levam? Dão-nos 
um amor volúvel que lisonjeia
os sentidos, mas não podem
consolar-nos da penúria
de existirmos, tu e eu, cada um
na sua pele, no seu áspero

lugar. E lembram-nos a todo
o instante do que já estava perdido
no escuro de uma gaveta
antes de ter começado,
como um verso interrompido
nas costas de um envelope
ou uma velha cassete 
que mal chegámos a ouvir,
hora e meia de remorso

e distorção. Não te salvo, 
não me salvas - nem é certo,
quando o medo se demora,
que haja ainda o que salvar.
Contra o frio que nos ronda,
resta o lume que ateamos
por ternura, desfastio
ou vontade de vingar 
o dissabor de viver. 

 

Rui Pires Cabral
Oráculos de Cabeceira,
Averno

Fotografias

Nesta vida - é um facto - estamos sempre
a desaprender coisas novas. O mundo
vai guardando a luz nas suas bainhas negras
e temos a melindrosa companhia dos fantasmas
que nos procuraram: eles governam rudemente
os nossos pequenos remos e há um ceptro novo

para cada coroação. De repente, com a volta
das estações, damos por nós muito mais velhos
nas fotografias. As razões que nos assistiam
empalidecem em paisagens cruelmente coagidas
pela luz. Fomos expulsos dos grandes palácios

da alegria? Onde estão os mapas que nos guiavam
lá dentro, exactos como o instinto? Não sabemos
responder: o caminho turva-se: são as incertezas
da maturidade. As palavras não nos iluminam
e o amor está condenado aos defeitos naturais
do coração, que ainda assim há-de voltar a arder

sem defesa nem socorro uma vez mais.

Rui Pires Cabral

se pudesses ver.

A meio da tarde o dia ainda não foi encetado,
parece barricar-se nas folhas moles
dalgum livro. Tu já sabes como eu gosto dos cafés
nas horas de pouco movimento. Os empregados
podem entregar-se a querelas ruidosas nessa altura
e os reformados na mesa do fundo vão dizer em voz alta
aquilo que pensam sobre o governo.

Ao princípio da noite é como ter sangue
nas mãos. Talvez o tempo ainda se componha, talvez possa
telefonar a um amigo. É certo que nas ruas se torna mais fácil
distrair o medo, há sempre espaço onde pousar
a cabeça. Mas em que me torno no quarto quando não estás
a olhar? O cheiro da comida flutua ainda pelos corredores,
sente-se o peso que dorme no escuro até às entranhas.
Se pudesses ver como isso às vezes me magoa.

"Winter Night"
Rui Pires Cabral