Gerir expectativas é a filha da putice.

Gerir expectativas é a filha da putice. Achamos que temos tudo controlado, previmos qualquer cenário, entramos de cabeça erguida e prontos para o que der e vier - afinal, em teoria, sabemos o que pode vir, de onde poderá vir e que danos provocará.

Este fim de semana vi o Grande Prémio da Rússia de Fórmula 1, quando era miúda lembro-me do meu pai não perder uma corrida, o som dos carros - ainda que diferente - ainda me faz estremecer a espinha e arrepiar cada pêlo do corpo, afinal, cresci ao lado do autódromo do Estoril e os primeiros 10 anos da minha vida foram a par e passo do circuito. A memória é, portanto, sensorial, ainda que não percebesse patavina do que estava a ver até me inteirar da coisa - quase 30 anos mais tarde - e, por isso, este domingo, foi toda uma emoção. Uma espécie de nostalgia embrulhada com a aflição da corrida, vivi cada segundo daquela prova, colada ao ecrã, sem conseguir desviar a atenção. A velocidade com que tudo muda, as expectativas de como correrá: sabes de onde começas, sabes ao que vais mas, no fundo, nunca sabes verdadeiramente como terminas. O Verstappen iniciou corrida em P20, terminou em 2º lugar. O Norris em P01, fez uma corrida belíssima, mantendo afincadamente um 1º lugar com o Hamilton coladinho a ele… bastou uma decisão precipitada para cair.

“O que leva uma pessoa a correr?” Penso, enquanto os vejo. Há tanto que pode correr mal, há pouco que se possa controlar, conhece-se o desporto, conhece-se o carro, os componentes, a pista, prevê-se o tempo, estudam-se os adversários… mas nunca, nunca, é suficiente.

De repente, surge-me: “o que leva uma pessoa a amar?” e ouço as palavras do Schumacher: “I didn’t have statistics in my mind when I was racing. It was always a consequence – a nice consequence. I enjoyed it, but it wasn’t the reason I was racing.” nunca pensamos como vai correr, podemos montar cenários - bons ou maus - mas nunca sabemos verdadeiramente. Amamos porque amamos.

Entramos no carro, confiamos em quem está a nosso lado, aproveitamos cada momento da corrida. Nas corridas em que não levamos a melhor: limpamos as lágrimas, aceitamos o mar revolto que nos embarga a garganta e esperamos que as nuvens passem.

Amar e correr, até que deixe de fazer sentido.

 
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A mosca e eu.

Deixei-me ficar na cama, uma perna para cada lado, o edredon pendurado e as almofadas espalhadas pelo quarto. É sábado e eu queria levantar-me cedo para aproveitar o sol, mas ele tinha-se escondido e eu resignei-me.

Levantei-me, ainda assim, pus doce de morango num croissant e aqueci um café com leite. Trouxe tudo para cima, recolhi uns quantos livros, um bloco de notas e o computador e espalhei tudo pela cama. Abri as janelas para escutar melhor o dia lá fora e fiquei ali especada, num vazio tão cheio de vida.

Peguei no telemóvel mais vezes do que ficaria bonito admitir, falei com pessoas, inspirei-me, pensei a minha vida, o meu futuro, os meus sonhos, tive vontade de escrever mas nada me parecia tão importante que justificasse ocupar uma folha branca, então deixei-me ficar a olhar o tecto enquanto ouvia a vida lá fora e seguia, com o olhar, uma mosca que entrara. Não sei quanto tempo passou, estávamos as duas vivas, eu a sentir-me inútil deitada na cama e ela no seu voo meio nervoso sobre mim, mas estávamos aqui. E este pensamento foi tão avassalador que tive vontade de chorar.

Tu também mereces.

Estou a aprender a cuidar de mim. Estou a aprender a olhar-me. E isto ainda implica muita disciplina e presença, porque é mais fácil voltar aos padrões antigos, à caixinha desconfortável mas conhecida.

É tão fácil esquecer-mo-nos de nós. Porque o trabalho, porque o tempo, porque os filhos, porque os gatos, porque a prima… eu sempre tive as desculpas todas e nunca me preocupei em mergulhar fundo e encontrar as causas. No fundo, era óbvio: eu não merecia cuidados.

”isto está a correr tão bem… de certeza que vai descambar”
”eu vou participar, mas é claro que não vou ganhar”
”gosto tanto dele, mas ele nunca vai olhar para mim”

Arranjar o cabelo e sentir-me envergonhada na rua, pintar as unhas e esconder as mãos nos bolsos, usar o batom vermelho mas medir bem os sítios onde, se te revês nalguma destas frases, tenho isto para te dizer:

Tu mereces ser feliz, e se tudo está a correr bem, aproveita cada segundo da viagem e vive-o.

Tu mereces ganhar, pára de te boicotar.

O que os outros sentem ou pensam em relação a ti é deles e não teu, e a maioria das vezes não corresponde àquilo que fabricaste na tua cabeça. Acredita, somos mais cruéis em relação a nós próprios do que os outros. Foca-te em ti.

Arranja o cabelo, pinta as unhas, usa o batom vermelho, é permitido sentirmo-nos bonitas (eu sei, pode ser uma revelação forte, podes parar para respirar se precisares).

Uma rotina de auto-cuidado não é fazer aquilo que vemos 30.000 mulheres fazer no Instagram e fazê-lo só porque não queremos ser a pessoa que não o faz, mas é encontrar no nosso dia-a-dia aquele momento em que estamos apenas connosco e respirar fundo, largar as merdas.

Estou numa viagem de regresso à Mulher que um dia rejeitei. Àquela que durante muito tempo não cuidei, àquela que não foi merecedora do meu mimo, do meu amor. Reencontrar a Cláudia, conhecer a Bárbara e a Dina foi muito importante neste processo. Durante muito tempo descurei ajuda, “não merecia”, mas o desespero às vezes leva-nos à rendição, e eu rendi-me ao que me estava a acontecer. E foi quando abri o peito e me permiti a aceitar o que viesse, que elas entraram de rompante na minha vida. A Cláudia desfez os nós na minha cabeça e mostrou-me que cuidar de mim é diário, e que pode ser simples. A Dina mergulhou comigo, e mostrou-me que a Mulher que eu rejeitei, ainda esperava por mim. E a Bárbara ensina-me sobre a ciclicidade do meu ser, sobre isto de ser Mulher.

São muitas as razões que nos levam a rejeitar esta Mulher, e durante muito tempo o recalquei, mas estou pronta para ser livre, para largar os pesos.

No 7º ano fui apalpada pelos rapazes da minha turma, não era a única, muitas colegas de turma o foram. E tinha vergonha, vergonha de fazer queixa. Escrevia no meu diário e rasgava as páginas, e isso fez com que nem no meu diário, espaço seguro, eu me permitisse ser eu.

Um dia, enquanto esperava pelo autocarro da escola, um homem numa carrinha de caixa aberta abriu a janela esticou dois dedos e lambeu o espaço entre eles. Eu era tão miúda que não sabia o que significava, mas senti-me suja e envergonhada.

Fui apalpada numa multidão (e sinto vergonha de o dizer porque, afinal, quantas de nós não o foram?)

Ser dread e usar roupa larga foi o melhor que a adolescência me trouxe. As curvas escondidas não davam aso a comentários desagradáveis na rua. Eu ia a pé para a escola todos os dias, e protegia-me.

Um dia, num autocarro, um homem apertou a minha perna, por baixo de toda a tralha que trazia em cima, e foi tão subtil que eu própria duvidei se estava a acontecer ou não. Demorei-me a ir para casa porque não queria que me vissem chorar, soube mais tarde que a técnica tem nome.

Há dois anos atrás, aqui em Sines, estava na praia da Costa do Norte a ler um livro quando sinto uma sombra a poucos metros à frente. Era primavera, e eu estava vestida, de collants e tudo. Levantei os olhos do livro e, à minha frente, um homem pela minha idade, tocava-se enquanto me via ler. Voltei a focar-me no livro e ele achou por bem passar mesmo a meu lado e murmurar qualquer coisa, que, com os nervos, nem distingui. Tornou a passar para a minha frente de pila na mão. Quis fugir mas tive medo que me seguisse, então enfiei-me o mais que pude atrás do meu livro e tentei ignorá-lo. Acabou por se afastar, eu não li nada, fui olhando pelo canto do olho para ver onde se dirigia e agarrei em tudo e corri para o carro. Já no carro, vi-o a subir e colocar-se numa mota. Arranquei e parei o carro mais à frente, o mais escondido que consegui. Ele passou. E eu reconheci-o. Era meu amigo de facebook, pessoa que aceitei por ser amigo de amigos meus. Apaguei o meu facebook.

Não temos de nos sujeitar isto, mas estamos sujeitas a isto, porque somos mulheres, porque não somos livres.

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Eu rejeitei a Mulher em mim porque não queria passar por isto, odiei o meu corpo, quis ser homem, quis ser livre, e só hoje entendo isto, só hoje tenho palavras e lágrimas para curar isto.

Por favor, fala. Chora. Tira isso de ti. Se não tens com quem falar, fala comigo. Não recalques, não te julgues, a culpa não é tua. A CULPA NÃO É TUA!


Ia escrever-vos sobre o banho incrível que me permiti tomar ontem, numa banheira cheia, com sal, calêndula, alecrim e lavanda - ritual do mês de Março da nossa comunidade querida -, mas acabei por contar-vos o que me impediu durante tanto tempo de ter momentos destes só comigo, e sentir verdadeiramente que os merecia.

Tu também mereces.

Num dia de Sol uma Borboleta

 
If I can stop one heart from breaking,
I shall not live in vain;
If I can ease one life the aching,
Or cool one pain,
Or help one fainting robin
Unto his nest again,
I shall not live in vain.
— Emily Dickinson

Tenho uma confissão para vos fazer: estive quase para apagar este blogue. É verdade, senti que não tinha cumprido o seu propósito inicial e, por isso, não havia razão para o manter aberto.

Quando iniciei a Assistência Virtual e me foquei a full no trabalho, senti que o pouco tempo que dedicava a este cantinho passaria a nulo e isso não só me deixava num stress, como a culpa que carregava às costas me deixava na incapacidade de escrever. Eu queria, mas não conseguia, as crenças que me limitavam eram muitas e difíceis de enumerar, cheguei a desabafar com amigas que me diziam para não apagar, que a minha visão seria sempre a minha visão e que, por isso, seria sempre diferente de qualquer outra pessoa, mas eu sentia-me sozinha, sentia que escrevia apenas para mim e que me falhara.

Estava entre a construção da minha página profissional e esta quando me passou pela cabeça a ideia de apagá-la, a minha decisão estava praticamente tomada quando, no e-mail do blogue, recebo uma mensagem.

Foi no dia 3 de Julho do ano passado, eu estava a trabalhar de janelas abertas e estava um sol lindo, lembro-me disto porque esta mensagem me mudou. Li-a em lágrimas e, enquanto ligava ao André, a contar-lhe tudo o que acontecera, pelo meio dos soluços, entrou uma borboleta branca pela minha casa adentro, pousou junto a mim e voou de novo. Eu estava com muitas dúvidas, sei hoje que não se tratava apenas do blogue, eram muitas as transformações, era a pele que estava a cair, era eu que já não sabia bem quem era.

A mensagem da Patrícia, que me escrevia de Hamburgo, e que não me conhecia de lado nenhum, chegou-me como um abraço apertado, um colo. Era uma carta de amor, daquelas que nos dizem “eu estou aqui, obrigada por estares aí também” e terminava com “Continua a partilhar esta tua forma de ver e viver a vida.” .

E foi ela, foi ela que me dissipou as nuvens, foi ela o sol daquele dia de Verão, a borboleta, e foi também ela que me sacudiu a culpa dos ombros e que me trouxe de novo à escrita. A escrita é o que me salva dos dias, e por isso, a mensagem da Patrícia foi tão importante.

Ficámos em contacto desde então e, hoje, tomámos um chá virtual. Acabámos de desligar e eu não paro de pensar no poder que um coração, que as palavras, têm na vida do outro. Na importância do amor, da gentileza, da empatia. E esta ideia de que somos muito mais do que aquilo que imaginamos, e que temos muito mais capacidades do que aquelas que pensamos. Para o bem, e para o mal. E caramba, quando usamos isto para o bem podemos mesmo mudar a vida de alguém. Ela mudou a minha. E agora fiquei só aqui, sentada no sofá, a sentir que nunca serei capaz de lhe agradecer as palavras que me escreveu naquele dia.