Num dia de Sol uma Borboleta

 
If I can stop one heart from breaking,
I shall not live in vain;
If I can ease one life the aching,
Or cool one pain,
Or help one fainting robin
Unto his nest again,
I shall not live in vain.
— Emily Dickinson

Tenho uma confissão para vos fazer: estive quase para apagar este blogue. É verdade, senti que não tinha cumprido o seu propósito inicial e, por isso, não havia razão para o manter aberto.

Quando iniciei a Assistência Virtual e me foquei a full no trabalho, senti que o pouco tempo que dedicava a este cantinho passaria a nulo e isso não só me deixava num stress, como a culpa que carregava às costas me deixava na incapacidade de escrever. Eu queria, mas não conseguia, as crenças que me limitavam eram muitas e difíceis de enumerar, cheguei a desabafar com amigas que me diziam para não apagar, que a minha visão seria sempre a minha visão e que, por isso, seria sempre diferente de qualquer outra pessoa, mas eu sentia-me sozinha, sentia que escrevia apenas para mim e que me falhara.

Estava entre a construção da minha página profissional e esta quando me passou pela cabeça a ideia de apagá-la, a minha decisão estava praticamente tomada quando, no e-mail do blogue, recebo uma mensagem.

Foi no dia 3 de Julho do ano passado, eu estava a trabalhar de janelas abertas e estava um sol lindo, lembro-me disto porque esta mensagem me mudou. Li-a em lágrimas e, enquanto ligava ao André, a contar-lhe tudo o que acontecera, pelo meio dos soluços, entrou uma borboleta branca pela minha casa adentro, pousou junto a mim e voou de novo. Eu estava com muitas dúvidas, sei hoje que não se tratava apenas do blogue, eram muitas as transformações, era a pele que estava a cair, era eu que já não sabia bem quem era.

A mensagem da Patrícia, que me escrevia de Hamburgo, e que não me conhecia de lado nenhum, chegou-me como um abraço apertado, um colo. Era uma carta de amor, daquelas que nos dizem “eu estou aqui, obrigada por estares aí também” e terminava com “Continua a partilhar esta tua forma de ver e viver a vida.” .

E foi ela, foi ela que me dissipou as nuvens, foi ela o sol daquele dia de Verão, a borboleta, e foi também ela que me sacudiu a culpa dos ombros e que me trouxe de novo à escrita. A escrita é o que me salva dos dias, e por isso, a mensagem da Patrícia foi tão importante.

Ficámos em contacto desde então e, hoje, tomámos um chá virtual. Acabámos de desligar e eu não paro de pensar no poder que um coração, que as palavras, têm na vida do outro. Na importância do amor, da gentileza, da empatia. E esta ideia de que somos muito mais do que aquilo que imaginamos, e que temos muito mais capacidades do que aquelas que pensamos. Para o bem, e para o mal. E caramba, quando usamos isto para o bem podemos mesmo mudar a vida de alguém. Ela mudou a minha. E agora fiquei só aqui, sentada no sofá, a sentir que nunca serei capaz de lhe agradecer as palavras que me escreveu naquele dia.


Como peças de um puzzle.

Ontem, enquanto trocava mensagens com um amigo - que não abraço há mais de 10 anos -, dei por mim a pensar: “quanto dos outros são ecos em nós?"

Sempre que se dá um encontro, há uma partilha. Nunca saímos dos braços de alguém como entrámos.

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Dele, trouxe um amplo conhecimento em séries e livros de ficção científica. Trouxe o Enki Bilal, uma mão cheia de artistas que nunca ouvira, a memória de um nariz franzido e os seus abraços apertados. Não nos vemos há 10 anos, mas quase podia jurar que foi ontem, porque consigo resgatar em mim cada pedaço que ele deixou.

Somos todos o puzzle e as peças de outros. Não ando só, carrego em mim todos quanto cruzei e todos cuja vida permanece em mim, por linhagem. A vida acontece, partimos ou ficamos, mas pelo meio a certeza de que somos a soma de quem connosco se cruzou.

Em jeito de gatilho de escrita, diz-me, “quanto de outros são ecos em ti?”

Da varanda.

Conheci o Nuno há pouco mais de 10 anos. É um dos amigos mais antigos do N., o meu namorado da altura. Conhecemo-nos num café, uma das vezes que ele voara de S. Miguel ao Continente para visitar família e amigos. A memória já me trai alguns detalhes, mas sei que gostei imediatamente dele. Os primeiros encontros eram assim: ele ia matar saudades do N. e eu conhecia-lhes o passado nas entrelinhas.

Um dia, já regressado de S. Miguel, almoçámos juntos em casa do N. e, depois de almoço, o Nuno acompanhou-me aos CTT. Lembro-me disto com uma estranha vividez e, embora não me recorde do que falámos, sei que foi nesse dia que passámos a ser amigos.

Nesse Verão, passámos as tardes na varanda de casa do N. e, sem que déssemos conta, começávamos uma tradição. Eu fazia café de cafeteira e comíamos bolachas de aveia, sentados no chão. Naquela varanda em Vila Fria, chorámos e rimos, remendámos a alma e o coração, vivemos e lacrámos a nossa amizade.

Depois foi tempo de voar. O Nuno, que é das pessoas mais bonitas e resilientes que conheço, coração de menino feito de sonhos, regressou à ilha.

À falta da nossa varanda, começámos a trocar cartas digitais. Cada uma a seu tempo, mas sempre no tempo certo. Hoje, em conversa, demo-nos conta que o fazemos desde 2011. Rimos e choramos, remendamos a alma e o coração, e muita vida nos passou pela ponta dos dedos.

O ritual é simples, aqueço uma chávena de café, descrevo uma varanda e derramo o coração. Há dias em que conversamos numa varanda envolta em floresta, noutros temos vista de mar. Há dias em que não conseguimos ver a paisagem que se estende, e outros em que não estamos lá para a ver. Nessas alturas, há sempre um de nós que regressa mais cedo para limpar o pó e pôr água ao lume.

Aqui, nesta varanda, medimos o tempo por saudades, construímo-la juntos e regressamos sempre, para mais um abraço.

Sines, 23 de Junho de 2015

a Antónia.
há coisas que precisam de ser escritas para que se celebrem. 


casar não é, não deveria ser, um passo leve. não se pensa em casar de hoje para amanhã, é uma decisão ponderada, trabalhada, é um passo que se dá porque faz sentido e não porque tem de ser, porque é melhor, ou porque a família quer e quer já. connosco aconteceu assim, a família queria, claro, mas nós só decidimos quando decidimos.
contudo, casar não deixa de ser uma decisão de peso, mesmo depois de feita. 

na véspera do meu casamento todo o meu corpo estava no núcleo de um tornado. a cabeça estava num turbilhão de memórias e o coração completamente perdido. não sei se algum dia desceram ao Poço Iniciático na Quinta da Regaleira, em Sintra, mas se não o fizeram acho que deviam fazê-lo pelo menos uma vez na vida (com guia!). o que senti nesse final de dia foi próximo da descida iniciática, como se caísse em mim toda a simbologia do Poço, como se tivesse descido às trevas de mim mesma... para renascer. e chorei, chorei muito. 

a Antónia, amiga da minha mãe - amiga física: de poucos anos, de coração: quase de uma vida - que acompanhou todo este processo de planeamento de casamento até ao último dia para as decorações finais, com o seu coração tamanho mundo e no meio de todo o meu pranto pré-matrimonial, pegou na minha mão e puxou-me a um mundo só dela, tudo o que me disse naquele instante pareceu encaixar-se nas falhas do meu pensamento andarilho. As coisas, as pessoas, as memórias, têm a importância que lhes dermos e importante era o dia que ia acontecer dali a umas horas, isso era importante, o meu coração era importante, tudo o resto eram estilhaços que dificilmente cola alguma uniria.  

serve o presente desabafo para isto: há pessoas que nos tocam de formas tão simples e tão naturais que elas próprias não sabem o quão foram importantes neste e naquele momento da nossa vida. a Antónia é já parte da família, é unânime, e não atravessa, "hoje", um momento fácil. e por isso desejo, celebrando-a, que as minhas palavras e o amor que nelas ponho lhe tragam um pouco mais de força, à força enorme que só uma mulher como ela carrega.