(memória)

Da carta que não chegou às tuas mãos, ficou um passado memorável. Nela constavam os pequenos episódios que vivemos juntos. Rasguei-a junto ao rio, fiquei a olhar os pedaços de papel serem absorvidos pelas águas turvas. A tentativa de apagar finalmente o nosso passado. Dirias que não havia necessidade, dirias que o que vivêramos não valia assim tanto, nem mesmo três folhas escritas com o coração nas mãos, a arder. Eu sorriria diante de ti como alguém que morresse. Despiria as roupas e lançar-me-ia na corrente fria. Tentaria recuperar o que conseguisse, pedaço a pedaço, até afogar-me de vez. Só existem duas razões para mexer numa ferida. Curá-la, ou abri-la ainda mais.

 

Fernando Dinis,
Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa, exodus.

Existindo.

"Estava apenas viva, existindo muito, respirando, olhando devagar. Sentindo a areia ceder, sob o peso do seu corpo estendido na praia, sentindo o seu corpo como uma força livre abrindo passagem, através de coisas confusas. Mas não havia pontos de referência nem limites, nada podia garantir que estava certo, para lá dessa certeza de estar vivo, não havia indicação possível no mundo exterior, era como caminhar por um areal infindável, uma praia deserta e lisa, contando unicamente com o impulso do seu corpo andando. Porque nada era claro, ela era no fundo talvez apenas um pequeno animal cego caminhando, empurrando-se para a frente, ao longo da superfície espelhada da areia, debaixo de um sol demasiado intenso, no turbilhão da luz reflectida pelo mar." 

'O Silêncio', 
Teolinda Gersão

a chave.


A chave que procuras só o tempo a poderá trazer. Entretanto, é tomar o comprimido e esperar, já não por outro dia, mas por outro ano, outra vida. Sabendo que só há esta. Sabendo que os anos, como os dias, se repetem. Sabendo que a chave que houver, só poderá abrir outra porta. Sabendo que o sorriso que nascer, só poderá pertencer a outros lábios.

"Broto Sofro", Jorge Roque
Averno

Em que estás a pensar? perguntou-lhe. Em nada, disse.


O absurdo de tudo isso, disse Afonso, a paixão da paixão, a procura da procura, o desejo em último caso sem objecto, porque o seu objecto é o desejo e nada do que você conta, ou diz, ou sonha, existe,
o medo do amor, disse ela, o medo que você tem de ir ao limite de si próprio, de destruir tudo o que fica para trás e criar em seu lugar outra coisa,

Em que estás a pensar? perguntou-lhe. Em nada, disse.

"O silêncio",
Teolinda Gersão