Note to Self #9



Segui o discorrer da rebuscada lógica, complexas teorias da conspiração que no seu enredo teciam guerras, tácticas, dissimulações, inimigos, em suma, alvos a abater, se ao alcance do tiro estivessem ou arma existisse que a eles se pudesse apontar. No fim, mais do que refutar, ocorreu-me apenas dizer: o mais difícil é perceber que a falta de crença nos outros atinge-nos sobretudo a nós. Somos nós que nos perdemos dos outros. Somos nós que sofremos a dor de nos faltarem. Nada disse, no entanto. No lugar onde escutavas, não o poderias ouvir.

Jorge Roque
uma escada que sobe pelos degraus de ti
cão celeste #2
outubro, 2012

«também sei que o amor é sinistro»

A água anda a uma velocidade branca, porém tu dizes: também sei que o amor é sinistro - e entretanto eu tomo drogas para celebrar um espaço louco, as redes amadurecem para a cerimónia ritual da pesca e os peixes amadurecem para a sua morte fervente - também vi as máquinas caminharem ao lado das colinas bêbedas, diz alguém devagar para não ser ouvido, de súbito há um lugar que foge pelas trevas dentro, mas de ti o que conheço é um lenço de grandes pétalas encostadas ao rosto, e o coração é minado pelo som das próprias pancadas, porém tu dizes: o amor é uma coisa silenciosa, e logo a tua voz cai no silêncio com a cauda enrolada, mas ainda se ouvem as canções do ocidente percorridas de anis e cantáridas, e mais abaixo as guitarras meditam a música, e a luz inclina-se para sermos redondos - oh silêncio: geometria absoluta - e o teu corpo pousa na delicadeza, é quando a beladona é uma flor que eu não conheço, e tu dizes: o amor é incorrigível como um sol de pé - então chega o tempo da transformação das imagens, e eu amo-te como o sal e a areia se deitam juntos, e nas terras do interior a ciência é esta: tuas ancas violentas, o teu cabelo frio.

Herberto Helder 

Viola Partida . 5


Estendias-me a viola partida, caixa de ressonância numa mão, braço solto na outra, as duas metades presas por cordas emaranhadas (a imagem era a de um corpo decepado, fios inúteis a ligarem o que já não se pertencia, entendo-te, custava ver). Desolado perguntavas-me se tinha arranjo, enquanto repetias que preferias ter partido um braço (e não era a viola, via-se nos teus olhos, era o amor, um laço que inteiro se tinha desfeito, uma crença que perfeita deixara de ser). Disse-te que sim, havia de ter arranjo, e ainda bem que não tinhas partido o braço, precisavas mais dele que da viola, pois a música estava em ti. E vi que ficaste menos triste. E vi sorrir nos teus olhos a alegria de haver uma luz. A mim salvaste-me o dia (nesse teu olhar que sorria fez-se um milagre de um sentido que dentro se procurava vazio). A ti, espero ter podido dar-te as palavras de sentires que apenas a viola se partira, não a música.


Jorge Roque
Canção da Vida,
AVERNO 047 

Tinho e André, a eles, que são feitos de música. 

Escrevo-te para não me sentir só.


escrevo-te para não me sentir só. risco a palavra capaz de revelar o meu segredo. terei segredos? revelar o quê? se posso rir de mim mesmo sem que isso me doa. apago rapidamente o texto que me reflecte. esfaqueio o rosto que me simula. alinhavo feridas nos pulsos. levo flores à sepultura onde me recolhi para escrever. tenho medo e escrevo-te cartas insensatas. o quarto povoa-se de corpos nascidos duma mancha de tinta. fumo. snifo. fumo cigarro atrás de cigarro. tenho medo. escrevo deitado à luz fraca do candeeiro. o medo solta-se da folha de papel quando teu reflexo irrompe da máscara que se desfaz.

al berto
push here com uma polaroid
Assírio & Alvim