Dona Júlia.

“Uma borboleta cor de barro decide arriscar
e tremula entre os espinhos da buganvília, 
sai por cima. Nada acontece, nada de mais, 
e a vida, a luta, continua. Tempo passa.”

José Miguel Silva
Serém, 24 de Março 
averno 042, 2011


A Livraria já tivera dias mais azuis, agora era apenas um raio de sol que se mostrava timidamente por entre as nuvens negras dos dias sempre iguais.

Certo dia, enquanto reorganizava os pedidos de cliente, apercebera-se de um molho de livros que pareciam esquecidos no meio das novidades editoriais. Estranhou que estivessem embrulhados em papel, agora amarelecido, e retirou-os do fundo do armário. O pacote tinha um nome escrito a lápis, um número de contacto meio apagado e a data da reserva. 


“Janeiro de 2012?!?! Mas que livros são esses?” espantara-se o Livreiro. 

I. estava cada vez mais curiosa, - “Posso abrir?” 

“Abre e liga à cliente, nos tempos que correm não nos podemos dar ao luxo de perder vendas.” 

No pacote, um livro de poesia de José Miguel Silva, “O Lago” de Ana Teresa Pereira, e um “Record”. 

“Estou sim? Dª Júlia Vilar? Peço imensa desculpa por estar a incomodá-la, estou a ligar-lhe da Livraria, temos aqui um pacote de livros reservado em seu nome e como já passou tanto tempo, gostaríamos de saber se ainda estaria interessada…”

Júlia parecia surpresa, naturalmente já não se recordava mas quis saber que livros eram. 

Li-lhe os títulos e mencionei, em tom de brincadeira, que também lá tinha um jornal, de há dez anos atrás, com notícias desportivas fresquinhas!

Ao contrário do que poderia supor, o riso na voz que esperava ouvir do outro lado da linha, dava lugar a um silêncio sufocado, tão pesado, que a fez desejar voltar atrás apenas o tempo suficiente para apagar a sua última frase. 

Entre soluços, I conseguiu distinguir um “minha querida, minha querida….” num sussurro que parecia alternar entre o riso e o choro. 
 

“Minha querida, a data do jornal… pode dizer-ma?” 

“Claro, claro… 28 de Janeiro de 2012”

Sentiu que as lágrimas lhe caíam pelo rosto, imaginou-a junto à mesinha do telefone, de frente para o espelho, as flores murchas sobre o aparador. 

“Eu ia levantá-lo nessa mesma manhã. Saí cedo, como sempre fiz, fui ao mercado e comprei as flores para a minha entrada. Uma casa com flores tem vida por si só, não concorda? - Aos sábados tínhamos esta rotina, ele ficava em casa a tratar do jardim, - havia de gostar dos meus rododendros!!! - e eu saía cedo, ia ao mercado, passava pela Livraria, trazia comigo as flores e a poesia. E o jornal. Depois do almoço sentávamo-nos no alpendre com um chávena de chá. Eu lia-lhe versos que ele não entendia, mas sorria, e isso era-me suficiente. Ele lia o seu jornal e as tardes eram calmas…

 Foi a última manhã que passámos juntos, o meu marido deixou-nos nesse dia.

ali.

bea estava ali, mas não estava ali .
a maioria das vezes deixava-se levar atrás de um pensamento que a levava a viajar pelas memórias, no tempo. quando regressava trazia o coração cheio, «para mais uma semana», pensava, «devagarinho».
como se sentia vazia, quando tinha tudo aquilo que idealizara, era uma pergunta que lhe vinha ao coração demasiadas vezes e para a qual não tinha resposta.
gostava de voltar a viver coisas que já vivera, mas sabia-as diferentes, iria ser sempre diferente daí em diante. 

 

da certeza

Cheirava a mar, naquela manhã de domingo.
Ela enroscara-se na poltrona da varanda, olhava o vazio. 
Nunca se sentira tão desamparada como naquele momento. O telefone caíra esquecido a seus pés.

Ele dormia alheado de tudo.

Levantara-se cedo nessa manhã, mal conseguira pregar olho. Acordara de todas as vezes que os seus corpos quase se tocaram. Precisava de sair daquela cama. Lavar a culpa. Precisava de falar com alguém, não necessariamente contar o que lhe ia na alma, isso ela nunca conseguiria fazê-lo. Precisava apenas de ouvir uma voz, uma voz que a fizesse sentir que não deixara de pertencer.

Sentia o coração embrulhado. O seu mundo começara a tremer como se estivesse prestes a ruir, como se tivesse sido construído sem bases, e ela sabia que isso era uma mentira, uma ilusão, ou somente o seu medo de ruir com ele, de desabar em dúvidas. Sabia, dentro de si, onde se sabem as coisas ainda antes de as sabermos, que era ali que queria estar, que ele era o seu sítio. 
Ouvia as gaivotas e sentia-se parte de todo aquele cenário. Como se tivesse sido moldada para aquela paisagem. 

«-Sabes... é como se este lugar coincidisse com o meu mundo interior. Como se fosse um reflexo...»*

O quarto estava silencioso, abriu a porta e tacteou o escuro em direcção à cama. Não o ouvia, mas sabia que ele já a pressentira. Levantou a manta e deitou-se junto a ele. Sentiu que lhe sorria - poderia sentir o sorriso dele em qualquer altura, mesmo num quarto escuro, e sabia sempre quando aquele sorriso era para ela -, deixou-se ficar com a cabeça no seu peito, sentiu como os dedos dele lhe acariciavam os cabelos, como lhe beijava a testa, queria falar-lhe e sentia as palavras presas na garganta. Sabia que ia desabar, que as lágrimas iam cair e não saberia o que dizer-lhe. Ele apertou-a com mais força junto a si. "O que tens? O que aconteceu?" e nem por um segundo aqueles braços deixaram de a segurar. 

"Tens a certeza, não tens?", ouviu-se perguntar. Soube, naquele exacto momento, que não formulara essa pergunta para ele, que já lhe respondera de todas as formas sem que fossem necessárias palavras, mas a ela própria. Viu-se projectada nele, junto a ele, como se fossem duas. Viu como se seguravam um ao outro, como se protegiam do mundo. Viu como as suas vidas se encaixavam sem que deixassem de ser. E teve a certeza.

Sim, tenho a certeza. 

_
* excerto de "Num Lugar Solitário", Ana Teresa Pereira 

cuidar do passado.

Sonhou com ele, há meses que o deixara de fazer, não são coisas que se controlem mas sentia o seu coração tão cheio, que era como se aquela parte de si já não fizesse sentido. Como se coubesse, apenas, naquele cantinho que lhe tinha destinado... e nada mais do que isso. 

Mas esta noite sonhara com ele, talvez porque o tivesse deixado entrar nos seus dias, não o era propositado, mais como quando a água gela a meio do duche. Com a mesma surpresa. 

Quis saber como estaria. Permitiu-se pensar nele o tempo suficiente para o imaginar feliz, tão feliz como ela estava agora, e isso, trouxe-lhe paz ao coração.