Princípio e fim

Pintar a escuridão a partir da escuridão,
tal como Caravaggio.

Assim, 
a habitação desnuda
                                  e o silêncio
que roda lentamente quando fechas a torneira. 

Assim
         sais do banho:
o teu corpo de mulher parece chuva. 

Não se pode gostar de toda a gente
                                                           - escreveu-o Robert Lowell -,
o coração não chega para tanto.

E falar de ti,
                   no fundo,
é também uma forma de egoísmo.

Pintar a escuridão
                             a partir da escuridão que nos enlaça
como o princípio e o final de um círculo.

Não o quebres e volta para junto de mim,
devagar,
             mais devagar,

até saber como termina tudo.

 

 

Josep M. Rodríguez,
A Caixa Negra
Averno

dos dias curtos e das noites chuvosas.

chamem-me o que quiserem
(sejam meiguinhos)
mas adoro estes dias de outono. há qualquer coisa de mágico no cair das folhas, na chuva que bate na janela, no cheiro da terra molhada. claro que não tem piada nenhuma enlear as malas no guarda-chuva enquanto tentamos atrapalhadamente entrar no carro. chegar ao trabalho ensopados que nem pintos, amaldiçoar as biqueiras dos prédios. mas mesmo assim, não há qualquer coisa de mágico nesta altura do ano? qual pessoas mais leves e quentes ao sabor do verão, o corpo quer-se é tapadinho com cachecóis que parecem mantinhas da avó. um chocolate quente ao final da tarde, o cheiro da sopa a ferver na caçarola, um livro de poesia e o sofá a chamar por nós. o amor quer-se mais no outono.


e não vou falar nas castanhas porque não sou a maior fã, mas o frio no nariz e o cheirinho das castanhas assadas nas ruas da baixa de Lisboa são das memórias mais bonitas que tenho guardadas. 

4.

Queres conclusões demasiado cedo (compreendo, são uma solução). Queres respostas, certezas, sim e não. Planetas seguem a sua rota, cometas a sua errância. Aceito-os a ambos. Respostas não sei, certezas não tenho. E também não tenho solução. Que posso dizer-te? Quero-te a ti, não à tua conclusão. Se estivesses aqui, tocava-te, apertava-te, entrava em ti fundo, até ao fundo, a escutar o teu suspiro mudo a entregares-te, a procurares-me, lá tão fundo. Entendes agora? Nenhuma verdade é maior do que um corpo que morre. Nenhuma mentira também.


Jorge Roque,
Canção da Vida
Averno