Princípio e fim

Pintar a escuridão a partir da escuridão,
tal como Caravaggio.

Assim, 
a habitação desnuda
                                  e o silêncio
que roda lentamente quando fechas a torneira. 

Assim
         sais do banho:
o teu corpo de mulher parece chuva. 

Não se pode gostar de toda a gente
                                                           - escreveu-o Robert Lowell -,
o coração não chega para tanto.

E falar de ti,
                   no fundo,
é também uma forma de egoísmo.

Pintar a escuridão
                             a partir da escuridão que nos enlaça
como o princípio e o final de um círculo.

Não o quebres e volta para junto de mim,
devagar,
             mais devagar,

até saber como termina tudo.

 

 

Josep M. Rodríguez,
A Caixa Negra
Averno

4.

Queres conclusões demasiado cedo (compreendo, são uma solução). Queres respostas, certezas, sim e não. Planetas seguem a sua rota, cometas a sua errância. Aceito-os a ambos. Respostas não sei, certezas não tenho. E também não tenho solução. Que posso dizer-te? Quero-te a ti, não à tua conclusão. Se estivesses aqui, tocava-te, apertava-te, entrava em ti fundo, até ao fundo, a escutar o teu suspiro mudo a entregares-te, a procurares-me, lá tão fundo. Entendes agora? Nenhuma verdade é maior do que um corpo que morre. Nenhuma mentira também.


Jorge Roque,
Canção da Vida
Averno

Amor quanto baste

O amor (pensa ela cardando o nevoeiro)
é tão avesso ao longe como ao perto.
Tal como vive, enterra-se em parte incerta.

Ainda sinto que a minha pele fora da tua
é uma morte dentro de nós:
o silêncio em que os orgãos se tornaram.
Quando vêm à tona mais se afundam
nos avessos. Nada distingue o pulmão do rim:
a bílis já só segrega cansaço.

Viver é somar os dias, tomar café sem pensar
na violência contra o açúcar. O saco aberto
a despejar a identidade antes que a garganta
engula o café já doce, porque alguém matou
antes, antes e depois de nós. 

A própria sedução é o corpo atiçado nas asas.
Entre o possível e a sua morte
há um instante de beleza:
o esquecimento da linha que protege de si o amor.

Fosse o horizonte esta dissolução
ou o nevoeiro (que a ilumina). Cegueira do olhar:
só os intestinos sofrem de clarividência,
só eles atiram para fora o mais íntimo de nós. 

Ainda assim será possível seguir a rota da sede
(os lábios dela) na espuma do café?
Desenhar-lhe na boa uma bússola sem norte?
(enquanto hesita) O café esfria.
Bebo-te de um trago para me esvaziar de ti.
Não é a cama o corpo mais fiel à lei da gravidade?
Não é por isso que continuamos a sorver
a chávena vazia?

A espuma desfaz-se na doçura do açúcar
antes de ser consumida pelas trevas do café.
Levo a chávena à boca: os lábios queimam
o avesso do beijo. 

É tão fácil culparmo-nos, a culpa quanto baste
(antes e depois de nós, ela repete).
Nada procuras, nem o líquido acre
com que mataste o coração. O açúcar
nos poros do café: doçura transitiva.
Incompreensível para os diabéticos da alma.

Não adianta uma dose de insulina.
Somos seres minúsculos
atados ao avesso do mundo
num jogo em que ninguém ganha,
nada se transforma
e tudo se perde quanto baste.
Definitivamente q.b.




Rosa Alice Branco,
O Mundo Não Acaba no Frio dos teus Ossos

4

o que verdadeiramente me dói não são as palavras
que nestes anos todos ficaram por dizer
arrumadas entre os medos que não gritámos juntos
e os sonhos que não transpirei na tua pele

o que verdadeiramente me dói são os silêncios
que nunca habitámos do mesmo lado
porque o silêncio só pode ser partilhado
com aqueles que amamos até à loucura
só ele é a dádiva perfeita que não pede mais nada
a não ser um mesmo lugar para deitar a cabeça
e esperar que a madrugada lentamente desfaça
todos os segredos e nada mais seja preciso
para voltarmos a ter vinte anos mesmo que
os vinte anos tenham morrido para sempre
na cidade em chamas

nunca os meus olhos guardaram imagem mais nítida
que a tua entre os maços de gitanes
e a poeira de maio

no minúsculo quarto em que tentámos acreditar
no futuro que não iria ser o de ninguém
e no entanto tu olhavas para mim e dizias este
será o lugar onde havemos de morrer
e os nossos amigos marcavam encontros
para as tardes em que estaríamos ali sozinhos
à lareira de pacíficos invernos familiares

hoje sei
que te devia ter colado então ao meu silêncio
para que levasses no fundo dos teus olhos
a cor dos meus
ainda que totalmente despidos de ti
mas não fui a tempo e alguém junto a nós disse
as pequenas mentiras mordem até ao fim
e eu comecei a falar de outras coisas
mas foi isso tenho a certeza que nos matou
por isso te peço agora ajuda-me
a não pecar outra vez do mesmo modo
para que os deuses não se cansem
de voltarem a pôr tudo no lugar certo

olha para mim não tenhas medo dá-me
camélias cravos azáleas o que houver
descobre a única palavra verdadeiramente nossa
a única a poder ensinar-nos ainda o rasto

das noites em que a cidade era um braseiro
e nós ardíamos no lume das pedras e das nossas línguas
enquanto os pardais se confundiam na vidraça
das janelas que escancarávamos por maio fora

e de repente eu disse os nossos filhos
vão ver um dia este retrato e querer saber
o que aconteceu
- mas nesse momento em que já dificilmente
se articulavam as palavras
tu olhaste as horas e desceste as escadas em silêncio
porque assim eu tinha pedido que fizesses

e a dona do hotel a prometer-nos
para além de domingos de sol
despedidas breves e indolores
 

 

Alice Vieira
Cinco breves momentos de maio